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Mapeamento da política territorial em Alagoas

Pesquisadoras da Universidade Tiradentes de Sergipe analisam os problemas enfrentados pelas comunidades quilombolas no processo de titulação de terras em Alagoas. Evidenciam que o processo é marcado por entraves burocráticos, falta de recursos, violência fundiária e pela lentidão do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em titular terras, destacando a importância da mobilização social e judicial para garantir os direitos das comunidades tradicionais.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 6 jun. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2022, no volume 11 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

O estudo critica as barreiras enfrentadas pelas comunidades quilombolas no processo de reconhecimento e titulação de seus territórios, com ênfase no estado de Alagoas. Embora a Constituição Federal de 1988 tenha formalmente reconhecido os direitos territoriais quilombolas por meio do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), a implementação do direito tem sido marcada por inúmeros entraves burocráticos, sociais e econômicos. Isso reflete a complexidade e a amplitude da luta quilombola no Brasil, uma vez que o processo de regularização fundiária e reconhecimento oficial das comunidades ainda está longe de ser concluído, mesmo após décadas de lutas e reivindicações.

Inicialmente, é importante compreender que o artigo 68 do ADCT foi um avanço significativo no reconhecimento dos direitos territoriais quilombolas, pois trouxe à tona a questão da propriedade coletiva das terras ocupadas. O artigo estabelece que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Contudo, a simples existência desse dispositivo constitucional não foi suficiente para assegurar a regularização fundiária. Durante os anos que se seguiram à promulgação da Constituição de 1988, houve muitas disputas sobre o significado e a aplicação prática do artigo 68, principalmente no que se refere ao conceito de “quilombo” e à abrangência territorial dos direitos garantidos a essas comunidades.

Nesse contexto, as autoras ressaltam a importância da Convenção número 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada em 1989 e ratificada pelo Brasil em 2002. A Convenção 169 trouxe um novo entendimento sobre os direitos territoriais dos povos tradicionais, ampliando a noção de “terra” para “território”, conceito que abrange tanto o espaço físico, como os recursos naturais, os modos de vida e as práticas culturais associadas a ele. A mudança de paradigma foi fundamental para o reconhecimento dos quilombolas como um povo com direitos territoriais específicos, com base na autodefinição e na trajetória histórica de resistência à opressão e ao colonialismo.

A autodefinição, conforme estabelecido pela Convenção 169 e posteriormente incorporada ao Decreto nº 4.887/2003, é um dos pilares do processo de regularização fundiária quilombola. O decreto, que regulamenta o artigo 68 do ADCT, define os “remanescentes das comunidades dos quilombos” como grupos étnico-raciais que se identificam como tal, baseando-se em critérios de autoatribuição e em sua relação histórica com a resistência à opressão. A autodefinição é essencial para o início do processo de titulação das terras, pois permite que as próprias comunidades se reconheçam como quilombolas e busquem, por meio da Fundação Cultural Palmares (FCP), o reconhecimento oficial de sua identidade. O reconhecimento é necessário para que possam pleitear a regularização de suas terras junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

Porém, apesar da base legal sólida, problemas diversos têm impedido o avanço do processo de titulação das terras quilombolas, especialmente em Alagoas. Uma das principais questões é a escassez de recursos financeiros e humanos no INCRA, órgão responsável pela execução da política de regularização fundiária quilombola. Conforme aponta a pesquisa, a falta de pessoal técnico, especialmente de antropólogos e engenheiros agrônomos, tem dificultado a elaboração dos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID), documentos básicos para a demarcação e reconhecimento das terras ocupadas pelos quilombolas. A ausência dos relatórios significa que muitas comunidades permanecem em uma situação de incerteza jurídica, sem acesso aos direitos plenos sobre os territórios que ocupam historicamente.

A crise de recursos humanos no INCRA foi agravada pela pandemia de COVID-19, que paralisou as atividades de campo e interrompeu os processos de regularização fundiária em curso. Todavia, os problemas estruturais no INCRA já existiam muito antes da pandemia, com muitos processos de titulação paralisados por falta de recursos desde a década de 2010. Em Alagoas, dos 17 processos de titulação analisados, apenas um, referente à comunidade de Tabacaria, localizada no município de Palmeira dos Índios, foi concluído até agora. No entanto, mesmo nesse caso, há pendências territoriais que ainda precisam ser resolvidas.

Das 70 comunidades quilombolas certificadas no estado pela Fundação Cultural Palmares, apenas 18 abriram processos de titulação junto ao INCRA, e a maioria desses processos ainda está em fase inicial, sem previsão de conclusão e sem que tenham sido realizados avanços significativos. Isso reflete a lentidão e a ineficácia do sistema de regularização fundiária quilombola no estado, que é agravada pela ausência de uma legislação estadual específica para tratar do tema. Diferentemente de outros estados, como Pará e Maranhão, que possuem instituições estaduais voltadas à regularização de terras quilombolas, Alagoas depende integralmente das normas federais e da atuação do INCRA, que tem sido insuficiente.

A pesquisa trata, ainda, das invasões e das ameaças às lideranças quilombolas. Muitas das comunidades, que já enfrentam dificuldades econômicas e sociais consideráveis, também lidam com conflitos fundiários envolvendo proprietários de terras, posseiros e invasores. A falta de segurança jurídica sobre os territórios quilombolas facilita invasões, colocando em risco a integridade física e a sobrevivência cultural das comunidades. Além disso, lideranças que se destacam na defesa dos territórios frequentemente enfrentam ameaças de morte e outras formas de intimidação.

Diante disso, o papel das organizações da sociedade civil, como a Defensoria Pública da União (DPU), é muito importante. A DPU tem atuado em defesa das comunidades quilombola por meio do ajuizamento de ações civis públicas para garantir que o INCRA cumpra sua obrigação de titular as terras quilombolas, como ocorreu no caso da comunidade de Mumbaça, no município de Traipu. As ações são uma tentativa de pressionar o Estado a alocar os recursos necessários para a efetivação dos direitos quilombolas e garantir que o processo de regularização fundiária não seja paralisado indefinidamente.

Ao final, as pesquisadoras enfatizam a importância de uma ação coordenada entre o Estado, a sociedade civil e as próprias comunidades quilombolas para superar os obstáculos e garantir a efetivação dos direitos territoriais que lhes foram reconhecidos.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).