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Mapeamento da política territorial em Alagoas

Pesquisadoras da Universidade Tiradentes de Sergipe analisam os problemas enfrentados pelas comunidades quilombolas no processo de titulação de terras em Alagoas. Evidenciam que o processo é marcado por entraves burocráticos, falta de recursos, violência fundiária e pela lentidão do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em titular terras, destacando a importância da mobilização social e judicial para garantir os direitos das comunidades tradicionais.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 6 jun. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2022, no volume 11 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

O estudo critica as barreiras enfrentadas pelas comunidades quilombolas no processo de reconhecimento e titulação de seus territórios, com ênfase no estado de Alagoas. Embora a Constituição Federal de 1988 tenha formalmente reconhecido os direitos territoriais quilombolas por meio do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), a implementação do direito tem sido marcada por inúmeros entraves burocráticos, sociais e econômicos. Isso reflete a complexidade e a amplitude da luta quilombola no Brasil, uma vez que o processo de regularização fundiária e reconhecimento oficial das comunidades ainda está longe de ser concluído, mesmo após décadas de lutas e reivindicações.

Inicialmente, é importante compreender que o artigo 68 do ADCT foi um avanço significativo no reconhecimento dos direitos territoriais quilombolas, pois trouxe à tona a questão da propriedade coletiva das terras ocupadas. O artigo estabelece que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Contudo, a simples existência desse dispositivo constitucional não foi suficiente para assegurar a regularização fundiária. Durante os anos que se seguiram à promulgação da Constituição de 1988, houve muitas disputas sobre o significado e a aplicação prática do artigo 68, principalmente no que se refere ao conceito de “quilombo” e à abrangência territorial dos direitos garantidos a essas comunidades.

Nesse contexto, as autoras ressaltam a importância da Convenção número 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada em 1989 e ratificada pelo Brasil em 2002. A Convenção 169 trouxe um novo entendimento sobre os direitos territoriais dos povos tradicionais, ampliando a noção de “terra” para “território”, conceito que abrange tanto o espaço físico, como os recursos naturais, os modos de vida e as práticas culturais associadas a ele. A mudança de paradigma foi fundamental para o reconhecimento dos quilombolas como um povo com direitos territoriais específicos, com base na autodefinição e na trajetória histórica de resistência à opressão e ao colonialismo.

A autodefinição, conforme estabelecido pela Convenção 169 e posteriormente incorporada ao Decreto nº 4.887/2003, é um dos pilares do processo de regularização fundiária quilombola. O decreto, que regulamenta o artigo 68 do ADCT, define os “remanescentes das comunidades dos quilombos” como grupos étnico-raciais que se identificam como tal, baseando-se em critérios de autoatribuição e em sua relação histórica com a resistência à opressão. A autodefinição é essencial para o início do processo de titulação das terras, pois permite que as próprias comunidades se reconheçam como quilombolas e busquem, por meio da Fundação Cultural Palmares (FCP), o reconhecimento oficial de sua identidade. O reconhecimento é necessário para que possam pleitear a regularização de suas terras junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

Porém, apesar da base legal sólida, problemas diversos têm impedido o avanço do processo de titulação das terras quilombolas, especialmente em Alagoas. Uma das principais questões é a escassez de recursos financeiros e humanos no INCRA, órgão responsável pela execução da política de regularização fundiária quilombola. Conforme aponta a pesquisa, a falta de pessoal técnico, especialmente de antropólogos e engenheiros agrônomos, tem dificultado a elaboração dos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID), documentos básicos para a demarcação e reconhecimento das terras ocupadas pelos quilombolas. A ausência dos relatórios significa que muitas comunidades permanecem em uma situação de incerteza jurídica, sem acesso aos direitos plenos sobre os territórios que ocupam historicamente.

A crise de recursos humanos no INCRA foi agravada pela pandemia de COVID-19, que paralisou as atividades de campo e interrompeu os processos de regularização fundiária em curso. Todavia, os problemas estruturais no INCRA já existiam muito antes da pandemia, com muitos processos de titulação paralisados por falta de recursos desde a década de 2010. Em Alagoas, dos 17 processos de titulação analisados, apenas um, referente à comunidade de Tabacaria, localizada no município de Palmeira dos Índios, foi concluído até agora. No entanto, mesmo nesse caso, há pendências territoriais que ainda precisam ser resolvidas.

Das 70 comunidades quilombolas certificadas no estado pela Fundação Cultural Palmares, apenas 18 abriram processos de titulação junto ao INCRA, e a maioria desses processos ainda está em fase inicial, sem previsão de conclusão e sem que tenham sido realizados avanços significativos. Isso reflete a lentidão e a ineficácia do sistema de regularização fundiária quilombola no estado, que é agravada pela ausência de uma legislação estadual específica para tratar do tema. Diferentemente de outros estados, como Pará e Maranhão, que possuem instituições estaduais voltadas à regularização de terras quilombolas, Alagoas depende integralmente das normas federais e da atuação do INCRA, que tem sido insuficiente.

A pesquisa trata, ainda, das invasões e das ameaças às lideranças quilombolas. Muitas das comunidades, que já enfrentam dificuldades econômicas e sociais consideráveis, também lidam com conflitos fundiários envolvendo proprietários de terras, posseiros e invasores. A falta de segurança jurídica sobre os territórios quilombolas facilita invasões, colocando em risco a integridade física e a sobrevivência cultural das comunidades. Além disso, lideranças que se destacam na defesa dos territórios frequentemente enfrentam ameaças de morte e outras formas de intimidação.

Diante disso, o papel das organizações da sociedade civil, como a Defensoria Pública da União (DPU), é muito importante. A DPU tem atuado em defesa das comunidades quilombola por meio do ajuizamento de ações civis públicas para garantir que o INCRA cumpra sua obrigação de titular as terras quilombolas, como ocorreu no caso da comunidade de Mumbaça, no município de Traipu. As ações são uma tentativa de pressionar o Estado a alocar os recursos necessários para a efetivação dos direitos quilombolas e garantir que o processo de regularização fundiária não seja paralisado indefinidamente.

Ao final, as pesquisadoras enfatizam a importância de uma ação coordenada entre o Estado, a sociedade civil e as próprias comunidades quilombolas para superar os obstáculos e garantir a efetivação dos direitos territoriais que lhes foram reconhecidos.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Agenda 2030 e projetos de extensão para comunidades quilombolas

A Professora Doutora Ana Margarida Theodoro Caminhas, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Câmpus de Jaboticabal, relata a experiência de extensão universitária realizada com a comunidade quilombola de Ivaporunduva, no Vale do Ribeira. Destaca os desafios enfrentados em relação ao saneamento básico e à educação ambiental na comunidade, refletindo sobre a troca de saberes entre universitários e quilombolas. Além disso, ressalta a importância da confiança mútua e da Agenda 2030 como referência para ações de sustentabilidade. Caminhas também discute o racismo ambiental e a necessidade de políticas públicas que atendam as populações vulneráveis, integrando os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nas iniciativas de extensão.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 29 maio 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 10 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

O relato apresenta uma experiência educativa e de extensão universitária com a comunidade quilombola de Ivaporunduva, no Vale do Ribeira, São Paulo, em relação à Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável. Caminhas reflete sobre sua atuação e a de outros universitários em projetos de educação ambiental e saneamento básico, realizados entre 1993 e 1994, destacando os impactos tanto na comunidade como nos estudantes. A análise ressalta o papel da universidade na promoção de mudanças sociais e ambientais, ao mesmo tempo em que valoriza os saberes locais.

A experiência ocorreu em uma das regiões mais carentes de São Paulo, habitada por quilombolas e outras comunidades tradicionais que enfrentam questões como a falta de saneamento, acesso precário à água potável e vulnerabilidade social. Essas comunidades, frequentemente marginalizadas pelas políticas públicas, dependem da agricultura e do extrativismo para sobreviver.

O projeto de extensão da UNESP focou na cloração da água e na construção de fossas sépticas, além de instruir a comunidade sobre práticas de higiene para prevenir doenças. O trabalho, além de uma abordagem tecnicista, utilizou métodos lúdicos como teatro, contação de histórias e atividades artísticas para facilitar a compreensão dos temas e promover maior integração com a comunidade.

A relação de confiança com os quilombolas, inicialmente marcada por desconfiança devido ao histórico de ameaças de remoção por projetos de barragens, foi conquistada após várias reuniões. A aceitação do projeto foi simbolizada pelo convite para realizar atividades na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, um espaço comunitário central para a liderança quilombola.

O teatro desempenhou papel importante ao tocar em questões cotidianas de maneira acessível e engajadora. A integração entre as tradições locais e os temas como saneamento e preservação ambiental facilitou o envolvimento de todas as faixas etárias. O sucesso das apresentações reforçou a eficácia de métodos criativos na educação comunitária.

Quanto ao papel da universidade em projetos de extensão, a autora reconhece que, inicialmente, os universitários adotaram uma visão paternalista, mas com o tempo, entenderam que os quilombolas também tinham muito a ensinar. Esse diálogo entre o saber acadêmico e o tradicional foi essencial para o sucesso do projeto. A pesquisa-ação, metodologia utilizada no projeto, possibilitou a participação ativa dos estudantes em todas as etapas, garantindo flexibilidade e adaptação das atividades de acordo com o feedback da comunidade.

O racismo ambiental, tematizado pela autora, manifestou-se pela falta de políticas públicas adequadas para populações negras e tradicionais. Caminhas conecta essa questão aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), como o ODS 4 (Educação de Qualidade), ODS 6 (Água Potável e Saneamento) e ODS 10 (Redução das Desigualdades), propondo que o combate ao racismo ambiental deve ser uma prioridade em ações de extensão.

A experiência foi marcante para a formação dos universitários, muitos dos quais seguiram atuando em áreas relacionadas à sustentabilidade e justiça social. Caminhas reflete sobre como essa vivência foi fundamental para sua trajetória como educadora e pesquisadora, moldando sua visão sobre o papel da universidade na promoção de mudanças sociais e ambientais.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

A extensão universitária em comunidades quilombolas no Tocantins

A “Missão Amazônia 2020” foi uma iniciativa de extensão universitária realizada na Comunidade Quilombola de Lajeado, Tocantins, que promoveu a troca de saberes entre acadêmicos e quilombolas. Adaptada devido à pandemia, a jornada interna envolveu atividades culturais, construção de uma horta comunitária, oficinas de arte e diálogos intergeracionais. O projeto reforçou a identidade quilombola, incentivou o ingresso de jovens no ensino superior e fortaleceu os laços entre universidade e comunidade. A iniciativa destacou a importância da educação para promover o reconhecimento e a preservação dos saberes tradicionais e culturais da comunidade.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 21 maio 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 10 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Nelson de Moraes, Damião Rocha, Celenita Bernieri, Laurenita Alves e Jardilene Fôlha, do Grupo de Estudos em Democracia e Gestão Social (GEDGS), na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) relatam a edição 2020 da Missão Amazônia, ação de extensão universitária que tem sido executada desde 2015. O objetivo da ação é promover o desenvolvimento humano e a cooperação com comunidades tradicionais da região amazônica, no entanto, devido à pandemia de COVID-19, houve uma adaptação resultando na criação da I Jornada Interna da Missão Amazônia, realizada dentro da Comunidade Quilombola de Lajeado (Figura 1), situada no município de Dianópolis, Tocantins.

Figura 1 - Mapa do Estado do Tocantins com destaque à localização da capital, Palmas, o município de Dianópolis e a Comunidade Quilombola de Lajeado

Fonte: Moraes et. al. (2021).

Essa jornada teve como propósito central a articulação entre saberes tradicionais e acadêmicos, promovendo a valorização das práticas culturais quilombolas, o fortalecimento da identidade coletiva e a ampliação do acesso ao ensino superior por parte dos jovens da comunidade. Ao mesmo tempo, visou criar um espaço de troca de experiências entre diferentes gerações, destacando a importância da cultura, ancestralidade e memória como pilares essenciais na vida comunitária.

Lajeado é uma comunidade remanescente de quilombos, cujos membros têm profundas raízes culturais e históricas. A territorialidade quilombola de Lajeado é marcada por laços de parentesco e práticas culturais transmitidas oralmente, de geração em geração. No contexto da Jornada, a participação de todos os membros da comunidade – anciãos, adultos, jovens e crianças – foi fundamental para assegurar a continuidade dessas tradições. A experiência serviu para estreitar os laços entre a comunidade e a universidade, com foco em promover um intercâmbio de saberes e práticas de forma horizontal e respeitosa.

A jornada foi estruturada a partir de um conjunto de atividades que incluíram o “Encontro de Gerações”, uma roda de conversa que visava criar um espaço de diálogo entre os mais velhos e os mais jovens da comunidade. Nesse encontro, anciãos compartilharam memórias e histórias de suas vidas, muitas vezes centradas em práticas tradicionais como o adjunto, uma forma de trabalho comunitário em que os quilombolas se reúnem para realizar atividades agrícolas em um regime de mutirão. Essa prática, além de ser um mecanismo eficiente para o cultivo da terra, reforça os laços de solidariedade e cooperação entre os membros da comunidade, sendo considerada uma forma de manter viva a cultura ancestral.

Durante o encontro, os participantes eram convidados a escolher um objeto que representasse algum aspecto de sua vida na comunidade e a partir desse objeto contavam histórias relacionadas à cultura e à ancestralidade quilombola. Foram expostos itens como pilão, cabaças, pandeiro, bonecas negras, peneiras e outros objetos que remetem às práticas cotidianas da vida no quilombo (Figura 2). Cada relato era carregado de memórias e emoções, com muitos participantes relembrando momentos felizes e outros trazendo à tona as dificuldades enfrentadas ao longo da história de resistência quilombola.

Figura 2 - Objetos escolhidos pelos participantes da Jornada

Fonte: Moraes et. al. (2021).

Outra atividade relevante da jornada foi o trabalho de campo coletivo para a construção da primeira horta comunitária (Figura 3) de Lajeado. Nesse processo, homens e mulheres da comunidade, cada um com suas ferramentas, se reuniram para limpar o terreno, preparar a terra e construir cercas ao redor da horta. O trabalho conjunto, além de reforçar a coesão social, garante a subsistência da comunidade, já que grande parte dos alimentos consumidos é cultivada localmente.

Figura 3 - Atividades na horta comunitária

Fonte: Moraes et. al. (2021).

Durante a construção da horta, os anciãos orientaram os mais jovens sobre o manejo adequado da terra, o uso de ferramentas e a organização dos canteiros. Para os quilombolas mais velhos, como o patriarca Benedito, o adjunto é uma prática cultural que reforça os laços comunitários e assegura a continuidade dos conhecimentos ancestrais. Benedito lembrou os tempos em que, além do trabalho árduo na roça, os quilombolas costumavam cantar enquanto trabalhavam, mantendo um ritmo de trabalho coletivo que também era marcado por momentos de alegria e celebração. Essa tradição musical foi revivida durante a jornada, com apresentações de ritmos tradicionais, como a sússia e a catira, que fazem parte do repertório cultural de Lajeado.

Além das atividades manuais, a preparação do almoço típico quilombola (Figura 4)  durante a jornada também teve papel importante na transmissão de conhecimentos culturais. Mulheres e jovens da comunidade se reuniram para preparar a refeição utilizando ingredientes locais, como arroz, feijão, abóbora, quiabo e carnes produzidas na própria comunidade. A prática culinária é um exemplo da autossuficiência da comunidade, que mantém viva a tradição de cultivar seus próprios alimentos, reforçando o ciclo de sustentabilidade e autonomia alimentar. O momento de cozinhar juntos foi também uma oportunidade para o fortalecimento da oralidade, com as mulheres mais velhas transmitindo seus saberes para as mais jovens, enquanto compartilhavam histórias e memórias de suas próprias vivências.

Figura 4 - Preparação do almoço típico quilombola

Fonte: Moraes et. al. (2021).

Outro destaque da jornada foi a oficina de desenhos voltada para as crianças da comunidade (Figura 5). Nesse espaço lúdico, as crianças foram incentivadas a expressar, por meio da arte, o que mais gostavam na comunidade. Os desenhos resultantes refletiam a forte conexão das crianças com a natureza e o território quilombola, apresentando paisagens como rios, árvores e quintais, além de espaços de convivência, como o campo de futebol e as casas da comunidade. A oficina teve como objetivo promover a valorização da identidade quilombola desde a infância, incentivando as crianças a se reconhecerem como parte de uma história e cultura rica, que merece ser preservada e transmitida para as futuras gerações.

Figura 5 - Oficina de desenhos

Fonte: Moraes et. al. (2021).

Durante a jornada, buscou-se a valorização da educação e do ingresso dos jovens quilombolas no ensino superior. A Comunidade Quilombola de Lajeado já conta com vários jovens que ingressaram em universidades públicas, como a Universidade Federal do Tocantins (UFT) e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins (IFTO), principalmente por meio do sistema de cotas raciais. O acesso à universidade representa uma oportunidade importante para esses jovens no que tange ao desenvolvimento pessoal e profissional e como uma forma de fortalecer a luta quilombola por reconhecimento e direitos. Muitos desses jovens retornam à comunidade depois de formados, trazendo consigo conhecimentos adquiridos que podem ser aplicados em benefício da própria comunidade, em áreas como educação e agricultura.

A presença dos estudantes quilombolas na universidade, no entanto, vai além da obtenção de um diploma. Eles vivenciam novas experiências e estabelecem novas identidades a partir do contato com um ambiente acadêmico que, muitas vezes, está distante de sua realidade cultural. Esse processo de transição pode ser desafiador, mas oferece a oportunidade de fortalecer a identidade quilombola, à medida que os jovens passam a se ver reconhecidos por suas diferenças culturais e raciais. A universidade, ao acolher tais estudantes, contribui para o rompimento da invisibilidade histórica das populações negras no Brasil, promovendo um espaço em que suas histórias, memórias e saberes podem ser valorizados e reconhecidos.

A interação entre universidade e comunidade é descrita na pesquisa como uma via de mão dupla, em que ambas as partes se beneficiam do intercâmbio de saberes. Se, por um lado, a comunidade quilombola ganha com a presença de jovens mais capacitados que podem contribuir para seu desenvolvimento, por outro, a universidade também se enriquece ao abrir espaço para o conhecimento quilombola, tradicionalmente excluído dos currículos acadêmicos. O processo de diálogo entre saberes acadêmicos e tradicionais é visto como uma oportunidade de transformação social, no qual a universidade se compromete com a produção de conhecimento e com a inclusão e valorização de diferentes formas de saber.

A experiência de Lajeado ilustra como a educação, aliada ao reconhecimento das práticas culturais tradicionais, pode transformar a vida de uma comunidade, proporcionando aos seus membros as ferramentas necessárias para resistir às adversidades e construir um futuro mais justo e igualitário. A integração entre universidade e comunidade, promovida pela Missão Amazônia, demonstra que o conhecimento não precisa ser excludente ou hierárquico, mas pode ser compartilhado e co-criado, com benefícios mútuos para todos os envolvidos.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Educação Ambiental e Bem Viver na Reserva Extrativista de Canavieiras

Estudo questiona as bases econômica e tecnológica do conceito de desenvolvimento sustentável dominante. Propõe alternativas a partir do “bem viver” e do “envolvimento ambiental”, práticas vivenciadas por comunidades tradicionais, como os extrativistas da Reserva Extrativista (RESEX) de Canavieiras. Defende uma educação ambiental enraizada no pertencimento ao território e na valorização de saberes locais.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 13 maio 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 7 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Fábio Pessoa Vieira, Jamille Jesus dos Santos e Mariana Santana Falcão Maia, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), fazem um diagnóstico das crises ambientais e sociais que o mundo enfrenta, apontando para as limitações do modelo dominante de sustentabilidade, centrado no crescimento econômico e no uso de tecnologias limpas. A partir desse ponto de vista, os autores propõem alternativas baseadas em uma noção de “envolvimento ambiental” e no conceito filosófico do “bem viver”, ambos sustentados por práticas de comunidades tradicionais, como os extrativistas da RESEX de Canavieiras, no sul da Bahia.

Problemas das relações entre seres humanos e natureza, como a pandemia da Covid-19, o aquecimento global e o desmatamento na Amazônia salientam a urgência de repensar as práticas de desenvolvimento que impactam diretamente o meio ambiente e as populações que dele dependem. Adotar uma postura crítica em relação à visão hegemônica de sustentabilidade, incapaz de incorporar a diversidade de culturas e saberes presentes em territórios locais, torna-se emergencial.

A definição do conceito de desenvolvimento sustentável, formulado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no relatório “Nosso Futuro Comum” (1991), como a capacidade de satisfazer as necessidades do presente sem comprometer as das futuras gerações, embora amplamente aceita, baseia-se em uma lógica de crescimento econômico e progresso tecnológico que perpetua um modelo colonial de exploração dos recursos naturais. Mesmo a dependência das chamadas “tecnologias limpas” é uma solução paliativa que não questiona as causas estruturais dos problemas ambientais, apenas propõe ajustes dentro do mesmo sistema.

Diante disso, a noção de “colonialidade do poder” pode contribuir para a crítica do modelo de desenvolvimento hegemônico. Tal noção descreve como o sistema de conhecimento moderno-colonial impôs uma única visão de mundo, apagando memórias e saberes de povos originários e comunidades tradicionais. A colonialidade, segundo os autores, está profundamente enraizada na forma como a ciência moderna se desenvolveu, especialmente através da matematização da natureza e do uso do método indutivo criado por Francis Bacon. A ciência moderna, ao tentar homogeneizar a explicação da realidade, reforçou a ideia de que a natureza é um objeto a ser dominado e explorado.

No contexto da educação ambiental, tal lógica se traduz nas abordagens predominantes e que se baseiam em concepções conservacionistas e pragmáticas, focadas na criação de “bons hábitos” individuais e na introdução de novas tecnologias. Tais abordagens, no entanto, são simplistas por não abordarem a complexidade das interações entre ser humano e natureza. Ao se concentrar em soluções técnicas, a educação ambiental acaba por reforçar uma lógica fragmentária e reducionista, que separa elementos indissociáveis como cultura e natureza, ou ser humano e ambiente.

Para romper com esse modelo, os pesquisadores propõem a ideia de “envolvimento ambiental”, que se baseia em uma relação de pertencimento e intimidade com o território. O envolvimento ambiental é uma prática individual e um processo coletivo de vivência que emerge das interações cotidianas com o lugar. Nesse sentido, a sustentabilidade é vista como uma construção social e cultural, que se realiza na prática e na experiência dos sujeitos em suas relações com o meio ambiente. Esse conceito é ilustrado pelas narrativas de vida dos extrativistas da RESEX de Canavieiras, as quais fazem o papel de mais do que técnicas de pesquisa, sendo compreendidas como expressões autênticas da experiência humana em um contexto específico.

As narrativas revelam um modo de vida enraizado no território, em que o sustentável é entendido a partir da interação direta com os recursos naturais e da gestão coletiva do ambiente. Os extrativistas, pescadores e marisqueiras da RESEX de Canavieiras, dependem da saúde do manguezal e das águas costeiras para sua subsistência, mas também para a preservação de suas práticas culturais e econômicas. Por meio de dos extrativistas, os autores demonstram como essas comunidades resistem às lógicas hegemônicas de desenvolvimento e constroem alternativas baseadas na autossuficiência, solidariedade e justiça social, o bem viver.

A filosofia do “bem viver”, um conceito originário dos povos indígenas da América Latina, é introduzida na pesquisa como uma alternativa ao desenvolvimento sustentável ocidental. Essa filosofia, também chamada de sumak kawsay em quíchua, propõe uma forma de vida que valoriza a harmonia com a natureza e as relações comunitárias, rompendo com as lógicas antropocêntricas e capitalistas que predominam nas sociedades modernas. O bem viver oferece uma visão de mundo em que a vida é concebida como uma interdependência entre todas as formas de existência, na qual o equilíbrio ecológico é mantido através de práticas sustentáveis e solidárias.

O bem viver é, além de uma alternativa teórica, uma prática cotidiana de comunidades que historicamente foram marginalizadas pelo sistema colonial. Segundo os autores, essas comunidades possuem uma sabedoria acumulada ao longo de gerações, que lhes permite viver de maneira equilibrada e sustentável, sem explorar a natureza de forma destrutiva. A relação entre as comunidades e o ambiente é descrita como uma convivência respeitosa, em que a natureza não é vista como um recurso a ser extraído, mas como um elemento integrante da própria vida.

No caso da RESEX de Canavieiras, o bem viver se manifesta na organização comunitária dos pescadores e marisqueiras, especialmente durante a crise causada pelo derramamento de petróleo em 2019. A resposta coletiva a esse desastre ambiental é um exemplo claro de como o bem viver se traduz em práticas de resistência e resiliência. A união da comunidade para proteger o manguezal e as águas costeiras, o protagonismo das mulheres na organização das ações de contenção, e a criação de uma feira solidária para garantir a subsistência durante a crise, são evidências de como o bem viver se materializa em ações concretas de solidariedade e autossuficiência.

As narrativas dos extrativistas também destacam o papel fundamental do conhecimento tradicional na gestão do território. Esse conhecimento, transmitido de geração em geração, permite que as comunidades adaptem suas práticas às condições naturais, como o fluxo das marés e as características do manguezal. Os pescadores e marisqueiras utilizam esse conhecimento para determinar os melhores momentos para a pesca e para a contenção do petróleo, demonstrando uma relação íntima e profunda com o ambiente.

Os extrativistas da RESEX de Canavieiras têm muito a ensinar sobre o que significa viver de maneira sustentável. Suas práticas de conservação, solidariedade e respeito à natureza oferecem uma visão de sustentabilidade que está profundamente enraizada no pertencimento ao lugar e na valorização da diversidade de formas de vida. É por meio dessas experiências que podemos começar a construir uma educação ambiental mais inclusiva e plural, dizem os pesquisadores; educação tal que reconheça e valorize os saberes historicamente marginalizados e que ofereça alternativas reais ao desenvolvimento sustentável hegemônico.

Conforme defendida na pesquisa, a educação ambiental deve ser uma prática dialógica, que rompa com as lógicas da sociedade moderna-colonial e reconheça a pluralidade de possibilidades de ser sustentável no mundo. Para tanto, é necessário adotar uma perspectiva decolonial, que valorize o enraizamento e o pertencimento ao lugar, e que esteja aberta ao aprendizado com as experiências e saberes das comunidades tradicionais. Somente assim, afirmam os autores, será possível construir uma educação ambiental que contribua para a criação de um futuro mais justo e equilibrado, no qual as relações entre seres humanos e natureza sejam pautadas pelo respeito, pela reciprocidade e pela solidariedade.

Fundamentada no bem viver e no envolvimento ambiental, tal visão de educação ambiental oferece uma alternativa radical às abordagens tecnocráticas e individualistas que predominam no discurso global sobre sustentabilidade. Ao valorizar a experiência vivida, o conhecimento local e as práticas coletivas, essa abordagem propõe uma transformação profunda nas formas de pensar e agir em relação ao meio ambiente, desafiando as bases da raci

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).