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A extensão universitária em comunidades quilombolas no Tocantins

A “Missão Amazônia 2020” foi uma iniciativa de extensão universitária realizada na Comunidade Quilombola de Lajeado, Tocantins, que promoveu a troca de saberes entre acadêmicos e quilombolas. Adaptada devido à pandemia, a jornada interna envolveu atividades culturais, construção de uma horta comunitária, oficinas de arte e diálogos intergeracionais. O projeto reforçou a identidade quilombola, incentivou o ingresso de jovens no ensino superior e fortaleceu os laços entre universidade e comunidade. A iniciativa destacou a importância da educação para promover o reconhecimento e a preservação dos saberes tradicionais e culturais da comunidade.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 21 maio 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 10 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Nelson de Moraes, Damião Rocha, Celenita Bernieri, Laurenita Alves e Jardilene Fôlha, do Grupo de Estudos em Democracia e Gestão Social (GEDGS), na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) relatam a edição 2020 da Missão Amazônia, ação de extensão universitária que tem sido executada desde 2015. O objetivo da ação é promover o desenvolvimento humano e a cooperação com comunidades tradicionais da região amazônica, no entanto, devido à pandemia de COVID-19, houve uma adaptação resultando na criação da I Jornada Interna da Missão Amazônia, realizada dentro da Comunidade Quilombola de Lajeado (Figura 1), situada no município de Dianópolis, Tocantins.

Figura 1 - Mapa do Estado do Tocantins com destaque à localização da capital, Palmas, o município de Dianópolis e a Comunidade Quilombola de Lajeado

Fonte: Moraes et. al. (2021).

Essa jornada teve como propósito central a articulação entre saberes tradicionais e acadêmicos, promovendo a valorização das práticas culturais quilombolas, o fortalecimento da identidade coletiva e a ampliação do acesso ao ensino superior por parte dos jovens da comunidade. Ao mesmo tempo, visou criar um espaço de troca de experiências entre diferentes gerações, destacando a importância da cultura, ancestralidade e memória como pilares essenciais na vida comunitária.

Lajeado é uma comunidade remanescente de quilombos, cujos membros têm profundas raízes culturais e históricas. A territorialidade quilombola de Lajeado é marcada por laços de parentesco e práticas culturais transmitidas oralmente, de geração em geração. No contexto da Jornada, a participação de todos os membros da comunidade – anciãos, adultos, jovens e crianças – foi fundamental para assegurar a continuidade dessas tradições. A experiência serviu para estreitar os laços entre a comunidade e a universidade, com foco em promover um intercâmbio de saberes e práticas de forma horizontal e respeitosa.

A jornada foi estruturada a partir de um conjunto de atividades que incluíram o “Encontro de Gerações”, uma roda de conversa que visava criar um espaço de diálogo entre os mais velhos e os mais jovens da comunidade. Nesse encontro, anciãos compartilharam memórias e histórias de suas vidas, muitas vezes centradas em práticas tradicionais como o adjunto, uma forma de trabalho comunitário em que os quilombolas se reúnem para realizar atividades agrícolas em um regime de mutirão. Essa prática, além de ser um mecanismo eficiente para o cultivo da terra, reforça os laços de solidariedade e cooperação entre os membros da comunidade, sendo considerada uma forma de manter viva a cultura ancestral.

Durante o encontro, os participantes eram convidados a escolher um objeto que representasse algum aspecto de sua vida na comunidade e a partir desse objeto contavam histórias relacionadas à cultura e à ancestralidade quilombola. Foram expostos itens como pilão, cabaças, pandeiro, bonecas negras, peneiras e outros objetos que remetem às práticas cotidianas da vida no quilombo (Figura 2). Cada relato era carregado de memórias e emoções, com muitos participantes relembrando momentos felizes e outros trazendo à tona as dificuldades enfrentadas ao longo da história de resistência quilombola.

Figura 2 - Objetos escolhidos pelos participantes da Jornada

Fonte: Moraes et. al. (2021).

Outra atividade relevante da jornada foi o trabalho de campo coletivo para a construção da primeira horta comunitária (Figura 3) de Lajeado. Nesse processo, homens e mulheres da comunidade, cada um com suas ferramentas, se reuniram para limpar o terreno, preparar a terra e construir cercas ao redor da horta. O trabalho conjunto, além de reforçar a coesão social, garante a subsistência da comunidade, já que grande parte dos alimentos consumidos é cultivada localmente.

Figura 3 - Atividades na horta comunitária

Fonte: Moraes et. al. (2021).

Durante a construção da horta, os anciãos orientaram os mais jovens sobre o manejo adequado da terra, o uso de ferramentas e a organização dos canteiros. Para os quilombolas mais velhos, como o patriarca Benedito, o adjunto é uma prática cultural que reforça os laços comunitários e assegura a continuidade dos conhecimentos ancestrais. Benedito lembrou os tempos em que, além do trabalho árduo na roça, os quilombolas costumavam cantar enquanto trabalhavam, mantendo um ritmo de trabalho coletivo que também era marcado por momentos de alegria e celebração. Essa tradição musical foi revivida durante a jornada, com apresentações de ritmos tradicionais, como a sússia e a catira, que fazem parte do repertório cultural de Lajeado.

Além das atividades manuais, a preparação do almoço típico quilombola (Figura 4)  durante a jornada também teve papel importante na transmissão de conhecimentos culturais. Mulheres e jovens da comunidade se reuniram para preparar a refeição utilizando ingredientes locais, como arroz, feijão, abóbora, quiabo e carnes produzidas na própria comunidade. A prática culinária é um exemplo da autossuficiência da comunidade, que mantém viva a tradição de cultivar seus próprios alimentos, reforçando o ciclo de sustentabilidade e autonomia alimentar. O momento de cozinhar juntos foi também uma oportunidade para o fortalecimento da oralidade, com as mulheres mais velhas transmitindo seus saberes para as mais jovens, enquanto compartilhavam histórias e memórias de suas próprias vivências.

Figura 4 - Preparação do almoço típico quilombola

Fonte: Moraes et. al. (2021).

Outro destaque da jornada foi a oficina de desenhos voltada para as crianças da comunidade (Figura 5). Nesse espaço lúdico, as crianças foram incentivadas a expressar, por meio da arte, o que mais gostavam na comunidade. Os desenhos resultantes refletiam a forte conexão das crianças com a natureza e o território quilombola, apresentando paisagens como rios, árvores e quintais, além de espaços de convivência, como o campo de futebol e as casas da comunidade. A oficina teve como objetivo promover a valorização da identidade quilombola desde a infância, incentivando as crianças a se reconhecerem como parte de uma história e cultura rica, que merece ser preservada e transmitida para as futuras gerações.

Figura 5 - Oficina de desenhos

Fonte: Moraes et. al. (2021).

Durante a jornada, buscou-se a valorização da educação e do ingresso dos jovens quilombolas no ensino superior. A Comunidade Quilombola de Lajeado já conta com vários jovens que ingressaram em universidades públicas, como a Universidade Federal do Tocantins (UFT) e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins (IFTO), principalmente por meio do sistema de cotas raciais. O acesso à universidade representa uma oportunidade importante para esses jovens no que tange ao desenvolvimento pessoal e profissional e como uma forma de fortalecer a luta quilombola por reconhecimento e direitos. Muitos desses jovens retornam à comunidade depois de formados, trazendo consigo conhecimentos adquiridos que podem ser aplicados em benefício da própria comunidade, em áreas como educação e agricultura.

A presença dos estudantes quilombolas na universidade, no entanto, vai além da obtenção de um diploma. Eles vivenciam novas experiências e estabelecem novas identidades a partir do contato com um ambiente acadêmico que, muitas vezes, está distante de sua realidade cultural. Esse processo de transição pode ser desafiador, mas oferece a oportunidade de fortalecer a identidade quilombola, à medida que os jovens passam a se ver reconhecidos por suas diferenças culturais e raciais. A universidade, ao acolher tais estudantes, contribui para o rompimento da invisibilidade histórica das populações negras no Brasil, promovendo um espaço em que suas histórias, memórias e saberes podem ser valorizados e reconhecidos.

A interação entre universidade e comunidade é descrita na pesquisa como uma via de mão dupla, em que ambas as partes se beneficiam do intercâmbio de saberes. Se, por um lado, a comunidade quilombola ganha com a presença de jovens mais capacitados que podem contribuir para seu desenvolvimento, por outro, a universidade também se enriquece ao abrir espaço para o conhecimento quilombola, tradicionalmente excluído dos currículos acadêmicos. O processo de diálogo entre saberes acadêmicos e tradicionais é visto como uma oportunidade de transformação social, no qual a universidade se compromete com a produção de conhecimento e com a inclusão e valorização de diferentes formas de saber.

A experiência de Lajeado ilustra como a educação, aliada ao reconhecimento das práticas culturais tradicionais, pode transformar a vida de uma comunidade, proporcionando aos seus membros as ferramentas necessárias para resistir às adversidades e construir um futuro mais justo e igualitário. A integração entre universidade e comunidade, promovida pela Missão Amazônia, demonstra que o conhecimento não precisa ser excludente ou hierárquico, mas pode ser compartilhado e co-criado, com benefícios mútuos para todos os envolvidos.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).