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Educação Ambiental e Bem Viver na Reserva Extrativista de Canavieiras

Estudo questiona as bases econômica e tecnológica do conceito de desenvolvimento sustentável dominante. Propõe alternativas a partir do “bem viver” e do “envolvimento ambiental”, práticas vivenciadas por comunidades tradicionais, como os extrativistas da Reserva Extrativista (RESEX) de Canavieiras. Defende uma educação ambiental enraizada no pertencimento ao território e na valorização de saberes locais.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 13 maio 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 7 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Fábio Pessoa Vieira, Jamille Jesus dos Santos e Mariana Santana Falcão Maia, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), fazem um diagnóstico das crises ambientais e sociais que o mundo enfrenta, apontando para as limitações do modelo dominante de sustentabilidade, centrado no crescimento econômico e no uso de tecnologias limpas. A partir desse ponto de vista, os autores propõem alternativas baseadas em uma noção de “envolvimento ambiental” e no conceito filosófico do “bem viver”, ambos sustentados por práticas de comunidades tradicionais, como os extrativistas da RESEX de Canavieiras, no sul da Bahia.

Problemas das relações entre seres humanos e natureza, como a pandemia da Covid-19, o aquecimento global e o desmatamento na Amazônia salientam a urgência de repensar as práticas de desenvolvimento que impactam diretamente o meio ambiente e as populações que dele dependem. Adotar uma postura crítica em relação à visão hegemônica de sustentabilidade, incapaz de incorporar a diversidade de culturas e saberes presentes em territórios locais, torna-se emergencial.

A definição do conceito de desenvolvimento sustentável, formulado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no relatório “Nosso Futuro Comum” (1991), como a capacidade de satisfazer as necessidades do presente sem comprometer as das futuras gerações, embora amplamente aceita, baseia-se em uma lógica de crescimento econômico e progresso tecnológico que perpetua um modelo colonial de exploração dos recursos naturais. Mesmo a dependência das chamadas “tecnologias limpas” é uma solução paliativa que não questiona as causas estruturais dos problemas ambientais, apenas propõe ajustes dentro do mesmo sistema.

Diante disso, a noção de “colonialidade do poder” pode contribuir para a crítica do modelo de desenvolvimento hegemônico. Tal noção descreve como o sistema de conhecimento moderno-colonial impôs uma única visão de mundo, apagando memórias e saberes de povos originários e comunidades tradicionais. A colonialidade, segundo os autores, está profundamente enraizada na forma como a ciência moderna se desenvolveu, especialmente através da matematização da natureza e do uso do método indutivo criado por Francis Bacon. A ciência moderna, ao tentar homogeneizar a explicação da realidade, reforçou a ideia de que a natureza é um objeto a ser dominado e explorado.

No contexto da educação ambiental, tal lógica se traduz nas abordagens predominantes e que se baseiam em concepções conservacionistas e pragmáticas, focadas na criação de “bons hábitos” individuais e na introdução de novas tecnologias. Tais abordagens, no entanto, são simplistas por não abordarem a complexidade das interações entre ser humano e natureza. Ao se concentrar em soluções técnicas, a educação ambiental acaba por reforçar uma lógica fragmentária e reducionista, que separa elementos indissociáveis como cultura e natureza, ou ser humano e ambiente.

Para romper com esse modelo, os pesquisadores propõem a ideia de “envolvimento ambiental”, que se baseia em uma relação de pertencimento e intimidade com o território. O envolvimento ambiental é uma prática individual e um processo coletivo de vivência que emerge das interações cotidianas com o lugar. Nesse sentido, a sustentabilidade é vista como uma construção social e cultural, que se realiza na prática e na experiência dos sujeitos em suas relações com o meio ambiente. Esse conceito é ilustrado pelas narrativas de vida dos extrativistas da RESEX de Canavieiras, as quais fazem o papel de mais do que técnicas de pesquisa, sendo compreendidas como expressões autênticas da experiência humana em um contexto específico.

As narrativas revelam um modo de vida enraizado no território, em que o sustentável é entendido a partir da interação direta com os recursos naturais e da gestão coletiva do ambiente. Os extrativistas, pescadores e marisqueiras da RESEX de Canavieiras, dependem da saúde do manguezal e das águas costeiras para sua subsistência, mas também para a preservação de suas práticas culturais e econômicas. Por meio de dos extrativistas, os autores demonstram como essas comunidades resistem às lógicas hegemônicas de desenvolvimento e constroem alternativas baseadas na autossuficiência, solidariedade e justiça social, o bem viver.

A filosofia do “bem viver”, um conceito originário dos povos indígenas da América Latina, é introduzida na pesquisa como uma alternativa ao desenvolvimento sustentável ocidental. Essa filosofia, também chamada de sumak kawsay em quíchua, propõe uma forma de vida que valoriza a harmonia com a natureza e as relações comunitárias, rompendo com as lógicas antropocêntricas e capitalistas que predominam nas sociedades modernas. O bem viver oferece uma visão de mundo em que a vida é concebida como uma interdependência entre todas as formas de existência, na qual o equilíbrio ecológico é mantido através de práticas sustentáveis e solidárias.

O bem viver é, além de uma alternativa teórica, uma prática cotidiana de comunidades que historicamente foram marginalizadas pelo sistema colonial. Segundo os autores, essas comunidades possuem uma sabedoria acumulada ao longo de gerações, que lhes permite viver de maneira equilibrada e sustentável, sem explorar a natureza de forma destrutiva. A relação entre as comunidades e o ambiente é descrita como uma convivência respeitosa, em que a natureza não é vista como um recurso a ser extraído, mas como um elemento integrante da própria vida.

No caso da RESEX de Canavieiras, o bem viver se manifesta na organização comunitária dos pescadores e marisqueiras, especialmente durante a crise causada pelo derramamento de petróleo em 2019. A resposta coletiva a esse desastre ambiental é um exemplo claro de como o bem viver se traduz em práticas de resistência e resiliência. A união da comunidade para proteger o manguezal e as águas costeiras, o protagonismo das mulheres na organização das ações de contenção, e a criação de uma feira solidária para garantir a subsistência durante a crise, são evidências de como o bem viver se materializa em ações concretas de solidariedade e autossuficiência.

As narrativas dos extrativistas também destacam o papel fundamental do conhecimento tradicional na gestão do território. Esse conhecimento, transmitido de geração em geração, permite que as comunidades adaptem suas práticas às condições naturais, como o fluxo das marés e as características do manguezal. Os pescadores e marisqueiras utilizam esse conhecimento para determinar os melhores momentos para a pesca e para a contenção do petróleo, demonstrando uma relação íntima e profunda com o ambiente.

Os extrativistas da RESEX de Canavieiras têm muito a ensinar sobre o que significa viver de maneira sustentável. Suas práticas de conservação, solidariedade e respeito à natureza oferecem uma visão de sustentabilidade que está profundamente enraizada no pertencimento ao lugar e na valorização da diversidade de formas de vida. É por meio dessas experiências que podemos começar a construir uma educação ambiental mais inclusiva e plural, dizem os pesquisadores; educação tal que reconheça e valorize os saberes historicamente marginalizados e que ofereça alternativas reais ao desenvolvimento sustentável hegemônico.

Conforme defendida na pesquisa, a educação ambiental deve ser uma prática dialógica, que rompa com as lógicas da sociedade moderna-colonial e reconheça a pluralidade de possibilidades de ser sustentável no mundo. Para tanto, é necessário adotar uma perspectiva decolonial, que valorize o enraizamento e o pertencimento ao lugar, e que esteja aberta ao aprendizado com as experiências e saberes das comunidades tradicionais. Somente assim, afirmam os autores, será possível construir uma educação ambiental que contribua para a criação de um futuro mais justo e equilibrado, no qual as relações entre seres humanos e natureza sejam pautadas pelo respeito, pela reciprocidade e pela solidariedade.

Fundamentada no bem viver e no envolvimento ambiental, tal visão de educação ambiental oferece uma alternativa radical às abordagens tecnocráticas e individualistas que predominam no discurso global sobre sustentabilidade. Ao valorizar a experiência vivida, o conhecimento local e as práticas coletivas, essa abordagem propõe uma transformação profunda nas formas de pensar e agir em relação ao meio ambiente, desafiando as bases da raci

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).