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A construção da relação social na infância quilombola por meio do instrumento musical ‘curimbó’ em Pitimandeua/Pará

Pesquisadores da UEPA e UNAMA investigaram papel essencial do instrumento musical ‘curimbó’ na integração das crianças quilombolas à cultura de seus ancestrais. Também abordaram a contribuição da música e dança para a preservação das tradições e para o fortalecimento das relações sociais que sustentam a identidade quilombola.

Por Cássia Amélia Gomes[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Bauru-SP | 27 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 8 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Ana D’Arc Martins Azevedo, da Universidade Estadual do Pará (UEPA) e Universidade da Amazônia (UNAMA), Elziene Souza Nunes Nascimento (UNAMA) e Edgar Monteiro Chagas Junior (UEPA) evidenciam a construção da relação social das crianças da comunidade quilombola Pitimandeua estabelecida nas atividades culturais de seu povo, bem como a afinidade com o instrumento musical ‘curimbó’.

Contexto Histórico e Social da Comunidade Quilombola de Pitimandeua

A comunidade de Pitimandeua, reconhecida oficialmente como quilombola pela Fundação Cultural Palmares, está situada no município de Inhangapi, no nordeste paraense. Sua história remonta ao final do século XIX, quando escravos fugidos de fazendas da região se estabeleceram ali.

Pitimandeua não é apenas um símbolo de resistência, mas também um local de preservação cultural, onde as tradições afro-brasileiras continuam vivas. A principal atividade econômica dos moradores é a agricultura, especialmente o cultivo e beneficiamento da mandioca, um dos pilares da subsistência local.

Contudo, a comunidade enfrenta desafios significativos, como o fechamento de sua única escola, em 2019, devido a medidas de contenção de gastos pela administração municipal. Isso deixou muitas crianças sem acesso à educação formal, exacerbando o isolamento e as dificuldades cotidianas da comunidade.

Diante disso, a liderança local da comunidade quilombola tomou a iniciativa de ocupar as crianças com atividades pedagógicas baseadas na cultura local, em especial o carimbó. O carimbó, uma manifestação cultural típica da região amazônica, é muito mais do que música e dança; é uma expressão de resistência e preservação cultural. O centro dessa manifestação é o ‘curimbó’, um tambor feito de tronco escavado, que dita o ritmo das melodias dançantes.

O Papel da Cultura e do Carimbó na Educação Infantil

O curimbó faz parte das tradições de grande valor da cultura quilombola, sendo representativo nas festas locais, tanto em rituais religiosos – homenagem aos seus santos padroeiros -, como em rituais sociais, como por exemplo, “plantio e colheita da mandioca e da maniva”.

A pesquisa destaca que o curimbó serve como um instrumento para a construção de relações sociais entre as crianças da comunidade, pois, por meio da dança e da música, as crianças desenvolvem laços de solidariedade, além de fortalecerem sua identidade quilombola. As atividades culturais promovidas pela liderança local não apenas mantêm as tradições vivas, mas também proporcionam um espaço para o desenvolvimento social e emocional das crianças.

Observações das crianças quilombolas indicam que o ato de brincar, aliado à prática do curimbó, é fundamental para o desenvolvimento. Segundo a teoria de Vygotsky, o brincar é uma forma de a criança recriar suas vivências diárias, imitando a realidade ao seu redor. No caso das crianças de Pitimandeua, o curimbó não é apenas um instrumento musical, mas também um brinquedo que facilita a aprendizagem e a construção de relações sociais.

O brincar com o curimbó, a dança e a música são momentos de felicidade e liberdade para as crianças, que se afastam das pressões e dificuldades de sua realidade cotidiana. A ausência de brinquedos industrializados e tecnologia é notável, e o tambor se torna o principal meio de entretenimento e aprendizado.

Praticar o carimbó é também uma forma de resistência contra a cultura hegemônica ocidental. A pesquisa registra que, mesmo com poucos recursos e o fechamento da escola, a liderança quilombola conseguiu manter viva a tradição cultural da comunidade, ao criar um ambiente onde as crianças podem se conectar com suas raízes e desenvolver um senso de identidade forte e coeso.

Considerações dos investigadores

O curimbó não é apenas um instrumento musical; é um símbolo de resistência, identidade e coesão social para as crianças quilombolas de Pitimandeua, garantindo que as tradições de seus ancestrais permaneçam vivas e relevantes no contexto contemporâneo.

Essa resistência cultural também é vista como uma forma de preservação das "epistemologias do Sul", que são saberes construídos historicamente por povos marginalizados e que resistem à colonização e ao poder do Estado. A continuidade dessas práticas culturais garante que as próximas gerações mantenham viva a tradição quilombola.

Mesmos diante de recursos limitados, a liderança da comunidade Pitimandeua conseguiu implantar projetos pedagógicos e desenvolvê-los com qualidade, contando com o apoio de acadêmicos oriundos de grupos de pesquisas das universidades da Amazônia paraense.

Com isso, é possível perceber uma perspectiva decolonial, já que o problema instaurado foi abordado pela ótica da resistência desse povo, o qual, mesmo vivendo um momento adverso referente ao fechamento da escola da comunidade e com poucos recursos, desenvolveram um trabalho com maestria, fortalecendo os vínculos de amizades e de afetividade entre as crianças e, principalmente, mantendo a tradição por meio das práticas culturais.

Deste modo, observa-se que a liderança quilombola, ao defender a prática cultural do curimbó, visa estimular as vivências das crianças com esse ritual. Assim, percebe-se a legitimação dos saberes e práticas culturais, ligados à representação identitária que estes sujeitos manifestam pelo pertencer a este espaço e por pertencer a cultura a qual seus ancestrais valorizavam.

 

 

[i] Doutoranda em Ciências (Área: Agronegócio e Desenvolvimento), FCE/UNESP, Bolsista da CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6091510020251169. Brasil. E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).