NOTÍCIAS

Roda da Sússia de Lajeado: alegria e ancestralidade quilombola

Membros da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Povos Originários e Comunidades Tradicionais (RedeCT) constataram que a dança Sússia, da Comunidade Quilombola de Lajeado, destaca-se como uma das principais manifestações culturais da história dos quilombolas desta comunidade. As marcas da ancestralidade estão presentes nos ritmos, melodias, passos, letras, instrumentos e vestes.

Por Laurenita Gualberto Pereira Alves[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Dianópolis-TO | 27 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2019, no volume 3 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Os professores Nelson Russo de Moraes e Idemar Vizolli, juntamente com suas orientadas quilombolas Celenita Gualberto Pereira Bernieri, Jardilene Gualberto Pereira Folha e Laurenita Gualberto Pereira Alves, apresentaram a prática de roda da Sússia.

A Comunidade Quilombola de Lajeado fica situada no município de Dianópolis, sudeste do Tocantins. Nesta comunidade, a Roda da Sússia é uma expressão cultural rica em ancestralidade quilombola.

A cultura quilombola é fortemente enraizada no respeito pelos mais velhos, sendo transmitida de geração em geração, principalmente por meio da oralidade e da observação das práticas cotidianas. As matriarcas da comunidade, reconhecidas por seu vasto conhecimento, desempenham um papel crucial na preservação dessas tradições.

Relatos orais das moradoras mais idosas da comunidade, como Dona Camila Martins de Deus, indicam que a ocupação do território de Lajeado ocorreu há aproximadamente 200 anos. Esses relatos são fundamentais para manter viva a memória coletiva da comunidade, que se organiza em torno de suas tradições culturais e religiosas. A Roda Sússia data da formação da comunidade

A manifestação cultural da Roda de Sússia se fortaleceu ao longo do tempo e consiste em uma dança culturalmente significativa, a qual representa a autoafirmação identitária da comunidade e a preservação das práticas africanas de dança coletiva.

Envolvendo instrumentos como tambores, violas, pandeiros e palmas das mãos, a dança é marcada pela alegria e reciprocidade entre os participantes, remetendo às raízes ancestrais e à resistência cultural. Durante o período da escravidão, a Sússia era uma das poucas oportunidades de celebração para os escravizados, um momento de reencontro com os seus e de confraternização após longos dias de trabalho.

As manifestações culturais e os costumes vividos pelos antepassados e mantidos pelos grupos existentes constroem e validam a identidade. Neste sentido,

“[...] a cultura e a identidade das comunidades tradicionais estão interligadas com o espaço territorial no qual vivem. A identidade por sua vez, é constituída por uma cultura homogênea, valores e tradições socialmente vivenciados e compartilhados” (PIRES; BERNIERI; FÔLHA, 2018, p. 167).

De acordo com os autores, a prática de roda da Sússia se justifica em virtude das desigualdades sociais, raciais, culturais e identitárias sofridas pelos povos de quilombo.

A Sússia como Manifestação Cultural

A Sússia é descrita como uma manifestação cultural que incorpora aspectos sociais e histórico-culturais, fundamentais para a construção da identidade dos grupos quilombolas. Classificada como patrimônio imaterial, essa dança está em processo de resgate, dado que é essencial para a preservação, valorização e fortalecimento da cultura negra. A Sússia compartilha elementos de danças de roda, como o batuque, e possui uma forte conexão com a ancestralidade africana.

A roda de Sússia na Comunidade Quilombola de Lajeado envolve dançarinos que, ao som de instrumentos percussivos, dançam com energia e alegria. A coreografia envolve homens e mulheres de todas as idades, que harmonizam movimentos e palmas ao ritmo dos pandeiros e caixas. A dança não só entretém, mas também conecta a comunidade com suas raízes africanas.

Os brincantes apontam como uma característica desta dança a sensualidade do seu bailado. Ao entrar na roda, homens e mulheres encenam movimentos impetuosos e provocantes na tentativa de conquistar ou formar o par.

Concomitantemente, há uma energia contagiante envolta a muito suor, risos e alegria dos que dançam em interação com os expectadores, os quais que se veem provocados e vibram com participações diretas ou indiretas, em celebração ao momento com os parentes quilombolas e amigos presentes.

Para o momento da dança Sússia, os participantes utilizam roupas de chitas florais, que, em especial, relembram seus antepassados. O traje são roupas de origem quilombolas. Os homens usam camisas e calças, as mulheres, saias longas e blusa. Todos dançam descalços.

Além da Sússia, a comunidade celebra suas festas religiosas, como a Festa de Reis, em que as danças e músicas tradicionais desempenham um papel central. Essas celebrações combinam elementos do catolicismo com manifestações de matriz africana. Nestas celebrações, há momentos de intensa vivência comunitária, nas quais a música, a dança e a fé se entrelaçam.

O Desafio da Preservação Cultural

Embora a comunidade quilombola de Lajeado se esforce para manter vivas suas tradições culturais, como a Sússia, ela enfrenta desafios significativos, incluindo o preconceito e a influência crescente da modernidade.

A substituição das danças tradicionais pelo som mecânico, por exemplo, ameaça a continuidade dessas práticas. No entanto, a resistência cultural permanece forte, com iniciativas para fortalecer a identidade quilombola e garantir que as novas gerações continuem a praticar e valorizar essas tradições.

Neste contexto, o ensino comunitário desempenha papel vital na preservação da memória e dos saberes quilombolas. A inclusão da Sússia no currículo educacional, tanto formal como comunitário, é vista como uma estratégia essencial para garantir que essa manifestação cultural continue a ser uma parte viva da identidade quilombola. Considera-se que a dança não é apenas uma forma de expressão artística, mas também um meio de autoafirmação e conscientização racial e cultural.

Reflexões

Dados de pesquisa revelam que as danças tradicionais estão diminuindo, visto que as festas tradicionais estão sendo substituídas pelo som mecânico. No entanto, a cultura tradicional vivente tem buscado resistir a essas influências, buscando influenciar e fortalecer as práticas da ancestralidade entre as novas gerações. Por meio da Sússia, a comunidade mantém vivas as tradições de seus antepassados, bem como reafirma sua identidade coletiva.

A comunidade continua empenhada em transmitir essas tradições às novas gerações, garantindo que a Sússia e outras manifestações culturais quilombolas não desapareçam. O ensino comunitário é fundamental nesse processo, proporcionando um espaço no qual as crianças e jovens podem aprender sobre sua cultura e história de forma integrada e significativa.

O desafio é garantir que essas práticas culturais não sejam apenas preservadas, mas também valorizadas e reconhecidas pela sociedade em geral, contribuindo para uma compreensão mais ampla da diversidade cultural do Brasil e para o fortalecimento das identidades quilombolas na contemporaneidade.

 

[i] Doutoranda em Ciências do Ambiente - PPCiamb/UFT. Mestre em Educação - PPGE/UFT. Professora do Estado do Tocantins (SEDUC/TO). Membra da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Comunidades Tradicionais (RedeCT). Membro da Comunidade de Remanescente Quilombola de Lajeado (TO). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).