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A lei n° 11.645/2008 na perspectiva indígena: os desafios e possibilidades decoloniais no contexto de retrocesso político

Pesquisadores abordam a Lei n° 11.645/2008, que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Discutem os desafios e as possibilidades de implementação da lei, destacando a necessidade de uma educação decolonial e intercultural crítica, que inclua e valorize os saberes indígenas, enquanto promove a ruptura com visões eurocêntricas e constrói uma sociedade mais justa e inclusiva.

Por Cristiane Teixeira Bazilio Marchetti[i] e Fernando da Cruz Souza[ii]| RedeCT, em Tupã-SP | 28 ago. 2024.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 7 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Os pesquisadores Marcelo Stortti, Thelma Ramos, Edson Machado de Brito, Samir Mortada e Mirela Ferreira, analisaram a aplicação da Lei n° 11.645/2008 sob uma perspectiva decolonial, destacando os desafios e possibilidades no ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena.

A Lei n° 11.645/2008 determina a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena nas escolas de educação básica no Brasil. Foi aprovada em 2008 devido às mobilizações de organizações indígenas e movimentos sociais indigenistas, que vinham reivindicando o reconhecimento das culturas e histórias dos povos originários no currículo escolar.

A legislação reflete uma tentativa de romper com o silenciamento histórico dessas culturas nas escolas e de corrigir uma série de distorções, como visões eurocêntricas que dominavam o ambiente educacional brasileiro, nas quais os indígenas eram muitas vezes retratados de forma genérica, caricata e preconceituosa.

A retratação a ser combatida pela lei é a do “índio” como um ser selvagem, homogêneo e restrito ao passado. Anteriormente à lei, o conteúdo da história indígena era, em grande parte, tratado de forma superficial, muitas vezes apresentado como algo pertencente a um tempo remoto, sem conexão com o presente. Com a Lei 11.645/2008, esse cenário começou a mudar, criando espaço para o reconhecimento da diversidade cultural e histórica dos povos indígenas no Brasil.

Embora a aprovação da lei tenha sido um passo importante, a implementação tem sido um processo lento e enfrentado resistências. Uma das maiores dificuldades está na desconstrução de práticas pedagógicas tradicionais e profundamente enraizadas em uma visão eurocêntrica da história. Edson Kayapó, intelectual indígena citado no texto, destaca que, mesmo com a garantia de direitos sociais na Constituição de 1988, a sociedade e o Estado brasileiro ainda resistem em admitir formas alternativas de organização social e cultural que rompam com a hegemonia ocidental.

Diante disso, os autores sublinham a importância de uma “reinvenção” da educação, na qual a história do Brasil seja contada também a partir do ponto de vista indígena, e não apenas pela ótica dos colonizadores europeus. Isso requer uma mudança profunda na forma como o currículo é estruturado e ensinado nas escolas, desde a educação infantil até o ensino médio. Para isso, os professores precisam ser capacitados a trabalhar com temáticas como a luta por territórios, os impactos do agronegócio e do desmatamento, e as formas de resistência e organização política dos povos indígenas, de modo que possam ir além dos estereótipos e realmente incorporar a riqueza cultural e histórica dos povos indígenas e afro-brasileiros.

O contexto político de 2021, ano de publicação da pesquisa, impôs novas barreiras a implementação da lei. O retrocesso nas políticas públicas voltadas para a educação e os direitos das minorias étnicas coloca em risco os avanços obtidos até então. A resistência de setores conservadores, tanto dentro como fora das escolas, também contribui para dificultar a implementação da lei. Muitos ainda veem a inclusão dessas temáticas no currículo escolar como uma ameaça à ordem estabelecida ou uma “politização” indevida do ambiente escolar.

Colonialidade e a educação

A colonialidade se refere à maneira como as estruturas de poder colonial continuam a operar, mesmo após a independência formal dos países colonizados. No caso da educação brasileira, a colonialidade se manifesta na forma como o currículo é construído a partir de uma perspectiva eurocêntrica, relegando a história e cultura indígenas e afro-brasileiras a uma posição subalterna.

Quijano, um dos autores elencados na pesquisa, argumenta que a colonialidade não se limita ao domínio político e econômico, mas abrange o controle do saber e do ser. Isso significa que o sistema educacional, ao longo da história, tem sido um instrumento poderoso na imposição de uma visão de mundo ocidental e na desvalorização dos conhecimentos e práticas dos povos originários. A educação, portanto, torna-se um espaço de disputa, em que diferentes formas de saber e de ser competem por reconhecimento.

A desconstrução da visão colonizadora exige uma abordagem decolonial, a qual valorize as epistemologias dos povos indígenas e afro-brasileiros e as incorpore no currículo. Para que isso aconteça, é necessário, segundo os autores, um esforço deliberado de professores, gestores educacionais e formuladores de políticas públicas a fim de romper com a lógica hegemônica e abrir espaço para outras formas de conhecimento.

Nesse sentido, a “interculturalidade crítica”, que se distingue de uma interculturalidade superficial, é importante, embora muitas vezes limitada a eventos pontuais ou folclóricos dentro das escolas. A interculturalidade crítica propõe uma relação de diálogo genuíno e simétrico entre culturas, no qual o conhecimento indígena e afro-brasileiro é tratado com o mesmo valor e relevância que o conhecimento ocidental.

No Instituto Federal da Bahia (IFBA), algumas experiências pedagógicas (Figura 1) têm buscado colocar a interculturalidade crítica em prática. Um exemplo é o projeto de ensino “Educação e Saberes Indígenas”, que promove oficinas sobre histórias indígenas, grafismo corporal e outras expressões culturais dos povos originários. Numa dessas oficinas, os alunos tiveram a oportunidade de conhecer a cultura do povo Sateré-Mawé, da Amazônia, e aprender sobre suas práticas e saberes tradicionais, como o uso de grafismos corporais, que não são meramente estéticos, mas expressões de identidade e resistência.

Figura 1 - Oficinas pedagógicas

Fonte: Stortti; Ramos; Machado de Brito; Mortada e Mirela Ferreira (2021).

De acordo com os autores, experiências como essa são fundamentais para descolonizar o currículo e permitir aos alunos, tanto indígenas como não indígenas, ter uma compreensão mais ampla e crítica da história e da sociedade brasileira. Ao interagir diretamente com tais culturas, os alunos podem questionar as visões preconceituosas e eurocêntricas que foram naturalizadas ao longo dos anos.

Análise dos pesquisadores

O capítulo conclui com uma reflexão sobre a necessidade de se construir “outros modos de olhar” para a diversidade cultural e étnica no Brasil. A partir das diretrizes estabelecidas pela Lei 11.645/2008 é possível repensar as práticas pedagógicas e criar um ambiente educacional que valorize a pluralidade de saberes e culturas presentes no país.

A decolonização do currículo escolar não é apenas uma questão de incluir novos conteúdos, mas de mudar a forma como esses conteúdos são ensinados e compreendidos. A interculturalidade crítica, conforme proposto pelos autores, oferece uma via para essa transformação, ao propor um diálogo simétrico entre diferentes epistemologias e ao reconhecer o valor dos saberes indígenas e afro-brasileiros.

Para que essa transformação seja efetiva, no entanto, é necessário um compromisso contínuo por parte de educadores, gestores e políticas públicas. A luta por uma educação mais justa e inclusiva não se encerra com a promulgação de leis, mas requer um esforço constante de resistência e inovação pedagógica, especialmente em contextos de retrocesso político e social.

A educação decolonial e intercultural crítica, portanto, não se limita a uma reforma curricular. Representa uma mudança mais profunda na forma como a sociedade brasileira se vê e se relaciona com suas múltiplas identidades, abrindo caminho para a construção de uma sociedade mais plural e equitativa.

 

[i] Mestre em Ciências/Agronegócio e Desenvolvimento (FCE/UNESP). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).