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Diálogo entre os saberes indígenas e os saberes científicos na Universidade Federal do Tocantins

Pesquisadores abordam o diálogo entre saberes indígenas e científicos na Universidade Federal do Tocantins (UFT). Focam na interculturalidade e ecologia dos saberes, analisando os desafios enfrentados pelos estudantes indígenas, como barreiras linguísticas, currículos eurocêntricos e exclusão social. Propõem a capacitação de professores, reforma curricular e políticas de permanência para uma verdadeira integração dos saberes tradicionais no ambiente acadêmico.

Por Cristiane Teixeira Bazilio Marchetti[i] e Fernando da Cruz Souza[ii]| RedeCT, em Tupã-SP | 28 ago. 2024.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2020, no volume 5 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

De autoria de Maria Santos, Suzana Nunes, Romário Nascimento e Carine Nunes, a pesquisa explora a integração e o diálogo entre os conhecimentos tradicionais indígenas e o saber acadêmico. Faz-se uma reflexão sobre a presença crescente de estudantes indígenas na Universidade Federal do Tocantins (UFT) e os desafios inerentes à inserção de seus saberes no ambiente universitário. A análise parte da ideia de que os saberes não são apenas construções intelectuais, mas também expressões de culturas, e, nesse sentido, o diálogo entre esses conhecimentos não ocorre apenas no campo do pensamento, mas envolve a transformação dos sujeitos e das relações de poder que os sustentam.

A ideia de interculturalidade desafia a hegemonia do saber ocidental, ainda predominante nas universidades brasileiras. A proposta teórica da interculturalidade surge como uma alternativa ao modelo tradicional de produção de conhecimento que, frequentemente, marginaliza ou desqualifica saberes que não se encaixam nos parâmetros científicos convencionais. O conceito é reforçado por Boaventura de Sousa Santos, por meio da ideia da ecologia dos saberes, que propõe um diálogo entre conhecimentos hegemônicos (como o científico) e não hegemônicos (como os saberes indígenas ou populares). Para Santos, essa ecologia é fundamental para reconhecer a infinita pluralidade dos saberes e buscar uma conjugação adequada de conhecimentos para enfrentar desafios sociais e ambientais complexos.

O questionamento sobre a estrutura de poder nas universidades faz da interculturalidade uma crítica direta à colonialidade do saber. A colonialidade do saber refere-se à desvalorização dos conhecimentos não europeus ou não ocidentais, que são vistos como inferiores, irrelevantes ou supersticiosos. Este fenômeno é particularmente evidente na relação da academia com os saberes indígenas, muitas vezes considerados “locais” ou “tradicionais”, enquanto o saber científico é tratado como universal e superior.

Como muitas universidades brasileiras, a UFT tem implementado políticas de ação afirmativa, reservando uma porcentagem de vagas para estudantes indígenas e de outros grupos tradicionalmente marginalizados. No processo seletivo de 2018, por exemplo, a universidade ofereceu 5% de suas vagas para estudantes indígenas, e a maior parte dessas vagas foi preenchida, marcando um aumento significativo em relação a anos anteriores.

Apesar do avanço no acesso, os desafios enfrentados pelos estudantes indígenas são numerosos. Entre os principais obstáculos estão as barreiras linguísticas, já que muitos estudantes indígenas têm o português como segunda língua, o que complica o acompanhamento das aulas e a compreensão dos materiais didáticos.

Além disso, o ensino tradicional baseado em uma lógica individualista e competitiva se choca com os valores comunitários e coletivos das culturas de origem indígena. De acordo com os autores, professores da UFT relataram que, em muitos casos, os estudantes indígenas têm dificuldade em integrar-se plenamente ao ambiente acadêmico, tanto por causa da linguagem como por uma falta de conexão entre o conteúdo ministrado nas aulas e as experiências e saberes que esses estudantes trazem consigo.

Os próprios professores enfrentam dificuldades em lidar com a diversidade cultural nas salas de aula. Muitos deles indicaram que se sentem despreparados para mediar o diálogo entre os saberes científicos e os conhecimentos indígenas. Há, de acordo com os relatos, uma clara lacuna na formação pedagógica dos professores no que tange à educação intercultural. Muitos não conhecem suficientemente a realidade dos estudantes indígenas e, como consequência, têm dificuldade em adaptar suas práticas de ensino para tornar o conteúdo mais acessível e relevante para alunos indígenas.

Colonialidade e ensino intercultural

No contexto da UFT, a colonialidade é evidente não só na ausência de conteúdo curricular que aborde os saberes indígenas de forma significativa, mas no modo como os estudantes indígenas são tratados. Muitos deles relatam experiências de discriminação e exclusão, seja por parte de outros alunos seja de professores. Alguns estudantes indígenas disseram que evitam revelar a identidade indígena para não serem alvos de preconceito.

A colonialidade do poder é observada quando se discute a posição hierárquica dos saberes indígenas em relação ao saber científico. Enquanto o saber acadêmico ocidental é considerado objetivo e racional, o conhecimento indígena é visto como subjetivo, místico e desprovido de valor científico. Essa hierarquização impede que os estudantes indígenas se sintam plenamente integrados à vida acadêmica, pois suas experiências e conhecimentos são sistematicamente desvalorizados.

Um dos caminhos para a transformação desse cenário é a capacitação de professores. A formação docente voltada para o reconhecimento e valorização dos saberes indígenas e outras formas de conhecimento é uma maneira de promover a verdadeira interculturalidade no ambiente acadêmico.

Os estudantes indígenas também apontaram a necessidade de que a universidade ofereça aulas de português como segunda língua, além de criar espaços de troca de saberes dentro da própria instituição. A pesquisa sugere que a UFT poderia promover eventos interculturais, seminários e projetos de extensão que permitissem maior interação entre os estudantes indígenas e não indígenas, e entre os saberes acadêmicos e tradicionais.

Outro ponto importante é a criação de um currículo mais flexível e inclusivo, que considere as diferentes formas de aprendizado e de organização social dos povos indígenas. Atualmente, o currículo das universidades é fortemente centrado em uma lógica de competição e individualismo, que contrasta com os valores coletivos e colaborativos que predominam em muitas culturas indígenas. A introdução de novas práticas pedagógicas, como trabalhos em grupo e a produção coletiva de conhecimento, poderia ajudar a tornar o ambiente acadêmico mais acolhedor para os estudantes indígenas.

Além disso, um aspecto crítico é a permanência dos estudantes indígenas na universidade. Embora o acesso tenha aumentado, ainda há muitas barreiras que dificultam a continuidade desses alunos nos cursos de graduação. Além das dificuldades linguísticas e culturais, muitos estudantes enfrentam desafios econômicos e sociais, como a falta de recursos financeiros e a distância entre suas comunidades e os campi universitários.

Segundo os pesquisadores, a permanência depende da criação de políticas mais robustas de apoio estudantes indígenas. Isso inclui a ampliação de bolsas de estudo, o fornecimento de moradia estudantil e a oferta de apoio psicológico e pedagógico contínuo. Junto a isso, a universidade precisa criar uma cultura de respeito à diversidade, que combata o preconceito e a discriminação dentro e fora das salas de aula.

 

[i] Mestre em Ciências/Agronegócio e Desenvolvimento (FCE/UNESP). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).