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Língua, cultura e identidade: os desafios dos indígenas no ambiente escolar urbano

Pesquisadoras da Universidade Federal de Roraima (UFRR) tematizam os problemas enfrentados por alunos indígenas em escolas urbanas no município de Boa Vista, Roraima, onde a falta de inclusão cultural e a violência simbólica ameaçam a construção de identidades. Resultados da pesquisa descrevem a negligencia da diversidade no ambiente escolar, a qual força os alunos a ocultarem suas origens culturais para se adaptarem. O estudo pauta a necessidade urgente de políticas públicas que garantam uma educação verdadeiramente inclusiva, em que a cultura e a língua indígenas sejam valorizadas no contexto escolar urbano.

Por Cristiane Teixeira Bazilio Marchetti[i] e Fernando da Cruz Souza[ii]| RedeCT, em Tupã-SP | 28 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2019, no volume 3 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

A pesquisa elaborada por Wellen Crystinne de Araújo Sousa e Leila Adriana Baptaglin, ambas pesquisadoras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), apresentam um diálogo que surgiu a partir do questionamento: como o ambiente escolar urbano influência na construção identitária do aluno indígena? A partir desse questionamento, as pesquisadoras foram à uma escola estadual de Roraima, situada num bairro periférico da capital Boa Vista. Lá observaram e entrevistaram um aluno do sexo masculino, estudante do 9º ano do ensino fundamental, com 14 anos de idade, da etnia Wapixana, cujo pseudônimo é Leonardo, sobre relação com os seus pares.

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O Brasil é um país marcado por impressionante diversidade cultural; nesta, a cultura indígena ocupa um lugar de destaque. A Constituição de 1988 assegura, no artigo 231, o reconhecimento das organizações sociais, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas, garantindo-lhes o direito de serem e permanecerem como indígenas. O reconhecimento é um passo importante na luta pela preservação das culturas indígenas, especialmente em um país cuja história de contato entre povos originários e colonizadores foi marcada por conflitos e tentativas de assimilação forçada.

O estado de Roraima, um dos mais ricos em terras indígenas, com a presença de diversas etnias, como os Makuxi, Taurepang, Wapixana e Yanomami, contribui para a formação de uma paisagem culturalmente diversa. Historicamente, os povos indígenas têm lutado pela demarcação de terras e pelo reconhecimento de direitos. No entanto, nas últimas décadas, um aumento significativo na migração de indígenas para áreas urbanas tem ocorrido, em especial para a capital do estado, Boa Vista. A migração é motivada por um conjunto de fatores, incluindo a busca por melhores condições de vida, oportunidades de emprego e acesso à educação, oportunidades frequentemente ausentes nas comunidades indígenas mais isoladas.

Dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), de 2010, indicavam a presença de 324.834 indígenas vivendo em áreas urbanas no Brasil. Em Roraima, as etnias Makuxi e Wapixana são as que mais se destacam no que diz respeito à migração para as cidades. Tal fenômeno levanta questões sobre a preservação da identidade cultural indígena em ambientes urbanos, onde a pressão para a assimilação cultural é muito mais intensa. No ambiente escolar urbano, por exemplo, os filhos de indígenas estudam ao lado de alunos não indígenas e essas interações culturais podem influenciar profundamente a construção identitária dos alunos indígenas. A escola urbana pode representar tanto uma oportunidade quanto uma ameaça à identidade cultural.

A falta de inclusão da cultura indígena no currículo escolar

Apesar de a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) estabelecerem a obrigatoriedade da inclusão da história e cultura afro-brasileira e indígena no currículo escolar, a realidade das escolas urbanas está distante dessa norma. As observações realizadas na pesquisa revelam que os conteúdos ministrados nas escolas seguem um padrão nacional homogêneo, sem considerar as especificidades culturais dos alunos indígenas. Isso resulta em um currículo que marginaliza e invisibiliza as culturas indígenas, tratando-as como exceções e não como partes integrantes da formação da identidade nacional.

Esse problema é exacerbado pela falta de preparo das escolas para lidar com a diversidade cultural. As instituições de ensino raramente possuem um plano pedagógico que integre a cultura indígena ao cotidiano escolar. As metodologias utilizadas tendem a ser baseadas em modelos ocidentais, sem adaptação para atender às necessidades culturais específicas dos alunos indígenas. Isso cria um ambiente no qual a cultura indígena é constantemente silenciada e desvalorizada, o que pode ter impactos profundos na construção identitária dos alunos.

Neste contexto, um dos conceitos centrais na pesquisa, o de “violência simbólica”, contribui para a compreensão dos dilemas educacionais para a diversidade, tal como a indígena, em escolas urbanas. Cunhado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu para descrever formas sutis e insidiosas de dominação cultural, a violência simbólica ocorre quando as culturas dominantes impõem seus valores e normas às culturas minoritárias, de maneira inconsciente. No contexto escolar, isso se manifesta quando as culturas indígenas são marginalizadas ou tratadas como inferiores em relação à cultura dominante.

O caso de Leonardo, um aluno indígena da etnia Wapixana, exemplifica como essa violência simbólica pode impactar profundamente a identidade de um estudante indígena. Leonardo relata que, após ingressar na escola urbana, começou a sentir vergonha de seus costumes e tradições. O sentimento de vergonha é um reflexo direto da falta de valorização da cultura indígena no ambiente escolar. A escola, ao não reconhecer e valorizar a identidade cultural de Leonardo, contribui para a desintegração de sua autoestima e para a fragmentação de sua identidade.

Tal fragmentação também se manifesta em relação à língua materna, um dos pilares fundamentais da identidade cultural. Para os povos indígenas, a língua não é apenas um meio de comunicação, mas uma forma de preservar e transmitir conhecimentos, tradições e formas de ver o mundo. No caso de Leonardo, a língua Wapixana desempenha papel fundamental na identidade cultural. No entanto, essa língua é usada exclusivamente no ambiente familiar e na comunidade indígena, enquanto na escola e em outros espaços urbanos, Leonardo se comunica em português.

Essa divisão linguística é um indicador claro do conflito identitário que Leonardo enfrenta. Na escola, onde a língua portuguesa é a única aceita, a identidade indígena de Leonardo é reprimida. Esse processo de substituição linguística ameaça tanto a sobrevivência da língua Wapixana como a identidade cultural de Leonardo. Ao não valorizar a língua indígena, a escola desempenha um papel ativo na erosão dessa identidade.

Isso ocorre, pois não há preparo das escolas para receber e incluir alunos indígenas. Isso é evidente desde a ausência de professores indígenas até a inexistência de conteúdos que abordem a história e a cultura dos povos indígenas. Assim, cria-se um ambiente em que os alunos indígenas são forçados a esconder ou abandonar suas identidades culturais para se adaptarem ao modelo educacional dominante.

Leonardo se sente inibido ao expressar sua identidade indígena na escola. Segundo ele, ao tentar compartilhar aspectos de sua cultura com seus colegas e professores, foi ignorado ou até mesmo ridicularizado, resposta que reforça a marginalização da cultura indígena e contribui para a construção de uma identidade fragmentada. Com isso, Leonardo se sente forçado a adotar uma identidade que não é sua para ser aceito no ambiente escolar.

A importância da alteridade e da diversidade cultural na educação

A situação relatada destaca a importância da alteridade, ou seja, do reconhecimento e respeito ao outro como diferente na construção de um ambiente educacional verdadeiramente inclusivo. A realidade das escolas urbanas está distante desse ideal quando, e a falta de alteridade fica expressa na reprodução de modelos educacionais hegemônicos, que desconsideram a diversidade cultural dos alunos.

Sabendo que a construção identitária é um processo complexo que envolve a interação de vários fatores, incluindo a cultura, a língua e as experiências pessoais, para os alunos indígenas em escolas urbanas, esse processo é ainda mais complicado, pois devem navegar entre duas ou mais identidades culturais, muitas vezes estão em conflito.

A fala de Leonardo indica que ele está constantemente negociando entre sua identidade indígena e a identidade que lhe é imposta pela escola urbana. Esse processo de negociação é marcado por conflitos internos e externos, pois Leonardo se sente dividido entre sua comunidade indígena e o ambiente urbano. Esse processo de negociação identitária pode ter impactos profundos na autoestima e no bem-estar emocional de Leonardo.

Por tais motivos, é inequívoca a necessidade de que as políticas públicas sejam fortalecidas para garantir que os direitos constitucionais dos povos indígenas sejam plenamente respeitados e que a educação nas escolas urbanas seja verdadeiramente inclusiva. Neste sentido, a revisão do currículo escolar para incluir a história e a cultura dos povos indígenas ao cotidiano escolar, valorizando a diversidade cultural dos alunos é fundamental. Além disso, a contratação de professores indígenas, o desenvolvimento de materiais didáticos que reflitam a realidade dos alunos indígenas e a criação de espaços onde esses alunos possam expressar suas identidades culturais sem medo de discriminação ou represália também se fazem necessários.

Somente através de uma educação verdadeiramente inclusiva será possível preservar a rica diversidade cultural que constitui a identidade nacional brasileira. A educação deve ser um espaço em que os alunos, independentemente de sua origem cultural, possam se sentir valorizados e respeitados. Para os alunos indígenas, isso significa ter a oportunidade de aprender em um ambiente que reconheça e valorize sua cultura, sua língua e sua identidade.

 

[i] Mestre em Ciências/Agronegócio e Desenvolvimento (FCE/UNESP). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).