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A questão do ‘Pertencimento’ sob três “Olhares” Quilombolas de Ser

Focando especificamente no território de Jambuaçu, região Amazônica do estado do Pará, pesquisadores da UNAMA realizam reflexão sobre a noção de pertencimento, considerada vital para a preservação da identidade e da cultura quilombola.

Por Ana Maria Barbosa Quiqueto[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Tupã-SP | 28 ago. 2024

A pesquisa, elaborada por Elziene Souza Nunes Nascimento, Joana D’Arc Alves Paes Andrade e Edgar Chagas Monteiro Júnior, vinculados à Universidade da Amazônia (UNAMA), apresenta um diálogo sobre o conceito do território quilombola de Jambuaçu-PA, local da pesquisa, com vistas à compreensão do sentimento de pertencimento que manifesta entre os quilombolas e o que ele significa em suas vidas cotidianas.

Foram entrevistados três moradores de Jambuaçu, referidos por pseudônimos a fim da preservar as identidades. Entre eles, Maria Luíza e Ana Lima são nativas da comunidade, enquanto Fabrício Alves, que vive no território há 12 anos, se autodenomina aquilombado. Este termo, como explica a moradora Ana Lima, refere-se a alguém que, embora sem raízes culturais diretas com o quilombo, opta por morar e se integrar ao espaço como um agregado. Os questionamentos foram pautados na compreensão das questões relativas à vida pessoal (nome e idade), ser morador do quilombo e, também na concepção do que é pertencimento.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2022, no volume 11 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária.

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Historicamente, quilombos foram entendidos como espaços de resistência, formados por escravos fugitivos, mas essa visão tem evoluído. Atualmente, quilombos são vistos como territórios culturalmente dinâmicos, compostos por populações que mantêm práticas cotidianas de resistência e preservação de seus modos de vida. Tal definição desafia a ideia de que quilombos são espaços homogêneos e isolados, ressaltando sua complexidade social, cultural e política.

No caso de Jambuaçu, histórias locais indicam que o território se formou em torno de três mulheres escravizadas que fugiram e se estabeleceram na região, trazendo consigo a imagem de Nossa Senhora e iniciando uma comunidade baseada na agricultura de subsistência. Hoje, Jambuaçu compreende várias comunidades as quais sobrevivem principalmente da agricultura. A igreja, a praça e a escola formam o centro da vida comunitária.

Entretanto, os dados da pesquisa também expõem as complexidades enfrentadas no dia a dia dos territórios quilombolas. A falta de políticas públicas essenciais para garantir uma cidadania digna é evidente. A precariedade, ou até mesmo a ausência, de serviços básicos como transporte público, saneamento, educação de qualidade e atendimento de saúde é alarmante e exige uma resposta urgente das políticas governamentais.

O Olhar de Maria Luíza: Pertencimento como Vivência Diária

Maria Luíza descreve o pertencimento como um sentimento de orgulho e respeito pelos ancestrais. Para ela, pertencer ao quilombo não é apenas uma questão de localização física, mas de viver e expressar diariamente a identidade quilombola. Seu discurso destaca a resistência ao racismo e a importância de recontar a história dos ancestrais como formas de manter viva a cultura e a identidade quilombola.

Fortemente ancorada na ideia de resistência cultural, a fala de Maria Luíza a cultura quilombola é vista como um ato contínuo de resistência contra a opressão histórica e contemporânea. Ela enfatiza que o sentimento de pertencimento é manifestado em todas as facetas de sua vida cotidiana, desde o trabalho até as interações comunitárias, reafirmando sua identidade quilombola em cada ação.

O Olhar de Ana Lima: Do Silêncio ao Orgulho

Ana Lima compartilha uma experiência inicial de vergonha em se reconhecer como quilombola, motivada pelo medo do preconceito e da rejeição. Esse sentimento, no entanto, mudou quando ela ingressou na faculdade e passou a conhecer melhor a história de seu povo. A educação, neste caso, foi um fator crucial para que Ana Lima reconectasse com sua identidade quilombola e passasse a ter orgulho de suas raízes.

O relato de Ana Lima ilustra a complexidade da identidade quilombola, em que o pertencimento é muitas vezes silenciado pelo medo do preconceito. Sua transformação pessoal, provocada pelo acesso ao conhecimento acadêmico, revela como a educação pode ser uma ferramenta poderosa para a reafirmação da identidade e do orgulho étnico. A história de Ana Lima também evidencia as dificuldades enfrentadas por quilombolas em um contexto de racismo estrutural, onde a aceitação social muitas vezes está condicionada à negação de suas origens.

O Olhar de Fabrício Alves: Pertencimento como Conscientização Política

Fabrício Alves, embora não nativo, descreve seu sentimento de pertencimento a Jambuaçu por meio de uma lente de conscientização política e social. Para ele, pertencer ao quilombo é participar ativamente da comunidade, entender e valorizar suas raízes culturais e lutar pelos direitos enquanto cidadão brasileiro de ascendência africana. Ele destaca a importância de se reconectar com os valores tradicionais e a religião de matriz africana, que muitas vezes são suprimidos pela hegemonia cristã.

Em uma perspectiva única sobre o pertencimento, Fabrício Alves denota ligações que transcendem o simples laço étnico e se tornam uma questão de escolha política e engajamento comunitário. Ao escolher viver em um quilombo e se identificar com essa comunidade, Fabrício reafirma o papel do quilombo como um espaço de resistência e identidade coletiva. Sua visão amplia o conceito de pertencimento, incorporando elementos de ação política e solidariedade inter-racial.

Reflexões e Implicações

A pesquisa revela que o sentimento de pertencimento está presente entre os moradores quilombolas, como evidenciam os relatos dos entrevistados, e que esta é uma construção complexa, influenciada por fatores históricos, sociais e pessoais. No entanto, a análise também aponta que esse sentimento pode ser enfraquecido ou ausente, especialmente quando há desconhecimento das próprias raízes ou medo da rejeição em contextos fora do quilombo.

Diante disso, destaca-se a importância de que os quilombolas tenham acesso à história, cultura e tradições de seu povo. Essa autoafirmação, ou a falta dela, transcende os limites do território de Jambuaçu-PA e reflete uma questão mais ampla na luta pela identidade e reconhecimento dos quilombolas.

Fortalecer o sentimento de pertencimento é crucial para a construção da identidade quilombola, profundamente enraizada nas experiências vividas dentro do território. Promover diálogos que valorizem a história e as experiências dos moradores dessas comunidades pode se tornar uma ferramenta poderosa na luta pela resistência e autoafirmação do povo quilombola.

Além disso, é essencial engajar a comunidade na participação ativa de decisões que impactam positivamente seu cotidiano e suas vivências. Isso pode ser alcançado através da criação de fóruns, grupos de discussão e espaços de escuta, nos quais os quilombolas possam expressar suas necessidades e aspirações.

Por fim, a construção de um conhecimento que priorize a experiência local não só fortalece a identidade comunitária, mas também embasa a luta dessas histórias silenciadas por melhores condições de vida e justiça social.

 

[i] Doutoranda em Ciências/Agronegócio e Desenvolvimento (FCE/UNESP), Bolsista da CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1950187892176976. Brasil. E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).