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Da fala à internet: as práticas comunicacionais dos indígenas da comunidade Truaru da Cabeceira em Roraima

Pesquisadores da UFRR discutem a relevância do midiativismo em favor dos povos tradicionais, com destaque para as redes sociais como estratégia de resistência, sobrevivência, organização e fortalecimento étnico, destacando a vivência e a história oral transmitida por Ariene dos Santos Lima, “Susui”, e o professor indígena Mário Belarmínio, integrantes de uma das onze etnias existentes em Roraima, a Wapichana.

Por Marcos Roberto Terra de Oliveira[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT em Bauru-SP | 28 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 4 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Ariene dos Santos Lima, “Susui”, da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e a Dra. Vângela Maria Isidoro de Morais (UFRR) refletem sobre as práticas comunicacionais desenvolvidas pelos indígenas da comunidade Truaru da Cabeceira, situada na zona rural da cidade de Boa Vista, capital de Roraima. As pesquisadoras realizam uma genealogia dos processos de comunicação no cotidiano da comunidade, desde as expressões elementares como a oralidade às estratégias de comunicação na internet, a exemplo da fanpage “Rede Região Murupu”.

Oralidade e Memória Coletiva

A dinâmica cultural dos povos originários, no decorrer dos séculos, foi pautada pelas histórias orais, transmitidas de geração em geração. Contudo, uma enorme invisibilidade midiática indígena se apresenta como desafio comunicacional contemporâneo para estes povos.

A comunicação é uma ferramenta essencial de sobrevivência e resistência para as comunidades indígenas no Brasil, historicamente ameaçadas pela colonização e outras formas de opressão. A comunidade Truaru da Cabeceira, localizada na zona rural de Boa Vista, Roraima, fornece um exemplo de como as práticas comunicacionais evoluíram, desde a oralidade tradicional até o uso de tecnologias digitais, como a internet, para preservar e fortalecer a identidade e os direitos indígenas. “Susui” por meio da escrita de si como narrativa de pertencimento coletivo, enfatiza um período de mudança, resistência e sobrevivência do povo Truaru na conquista de seus direitos.

Na comunidade Truaru da Cabeceira, a fala desempenha um papel crucial na transmissão de conhecimentos e valores culturais, especialmente por meio das histórias contadas pelos mais velhos. Esses relatos preservam a história e as tradições e reforçam a identidade coletiva do grupo. Em diversos âmbitos, seja o encontro comunitário, seja a assembleia mensal, a oralidade serve como um elo que conecta o passado ao presente, mantendo viva a memória e os ensinamentos ancestrais.

Destaca-se que, para preservarem sua cultura, os indígenas precisaram antes romper com as estratégias dos colonizadores, evangelizadores e educadores durante a colonização, pois tais atores tiveram um papel fundamental na aculturação e assimilação de valores externos às comunidades.

Além da mera comunicação de informações; a tradição oral indígena é um meio de expressar a vida coletiva e de fortalecer os laços sociais dentro da comunidade. As práticas orais incluem narrativas durante rituais, reuniões e eventos comunitários, nos quais cada gesto, pausa e entonação carrega significados profundos. Essa forma de comunicação é intrinsecamente ligada à vivência cotidiana e à ancestralidade.

A Introdução da Escrita

Com o advento da escrita, novas possibilidades de comunicação surgiram para as comunidades indígenas. Embora a oralidade continue sendo fundamental, a escrita tornou-se uma ferramenta crucial para enfrentar os desafios impostos pela burocracia estatal e pela necessidade de formalização de demandas e direitos. Na comunidade Truaru da Cabeceira, o enorme desafio em transpor oralidade à escrita aconteceu por meio da educação. A escrita foi introduzida como uma forma de resistência e sobrevivência na luta pela demarcação do território e pelo exercício contínuo de garantir uma saúde de qualidade para todos.

Na comunidade, a formação de professores indígenas e a criação de escolas foram passos importantes para a apropriação da escrita. No entanto, esse processo não foi isento de desafios. A educação formal trouxe consigo a imposição de normas e valores alheios à cultura indígena, o que gerou um conflito entre as tradições orais e as práticas pedagógicas impostas. Ainda assim, a escrita foi incorporada como uma extensão da luta indígena, uma ferramenta que complementa a força física com a “luta com caneta e papel”.

O Impacto da Tecnologia e da Comunicação de Massa

A chegada da eletricidade e da televisão na comunidade Truaru da Cabeceira, em 2005, marcou um ponto de inflexão nas práticas comunicacionais do grupo. A introdução desses meios de comunicação em massa trouxe novos desafios e oportunidades. Por um lado, a televisão e o rádio ofereceram à comunidade uma janela para o mundo exterior, permitindo que se informassem sobre eventos globais e regionais. Por outro lado, esses meios também introduziram elementos culturais alheios, que passaram a influenciar os costumes e valores locais.

A televisão, em particular, se tornou uma presença dominante nos lares indígenas, alterando significativamente a dinâmica social da comunidade. As rodas de conversa noturnas, que eram uma prática comum antes da eletrificação, começaram a ser substituídas por momentos em frente à televisão. Tal mudança trouxe consigo a necessidade de refletir sobre o impacto dessas novas formas de comunicação de massa e como elas afetam a identidade cultural e a coesão social do grupo

Com a chegada da internet à comunidade Truaru da Cabeceira em um momento em que a tecnologia digital já estava transformando o mundo, a tecnologia trouxe uma nova dimensão à comunicação indígena, ao permitir a criação de plataformas digitais que facilitam a disseminação de informações e a mobilização social. Nesse contexto, o professor indígena Mário Belarmino foi um dos protagonistas e facilitadores, entre os parceiros de Truaru da Cabeceira, para aproximar a internet da escola e da aldeia, no período de 2008 a 2016.

A página “Rede Região Murupu”, criada por membros da comunidade, é um exemplo de como os indígenas estão utilizando a internet para promover suas causas e conectar-se com outras comunidades indígenas e o mundo. Os relatos da pesquisa revelam que as comunidades se apropriaram dos equipamentos e acessos digitais com o objetivo de produzir conteúdo protagonista, manter a vigilância contra todo e qualquer tipo de violência, reforçando constantemente os seus interesses.

No entanto, o uso da internet também apresenta desafios. A falta de infraestrutura adequada e a necessidade de formação contínua para os comunicadores indígenas são barreiras que ainda precisam ser superadas. Apesar disso, a internet representa uma ferramenta poderosa para o “renascimento étnico” no ambiente comunicacional global, proporcionando aos povos indígenas a oportunidade de serem os narradores de suas próprias histórias e de se engajarem em uma rede global de resistência.

De acordo com a pesquisa, o aprender a aprender dos povos tradicionais sofre com o preconceito e a discriminação da sociedade ainda hoje. Todavia a articulação, a persistência, a sabedoria pautada na coletividade, cria oportunidades e afirmações. São exemplos citados por “Susui” o acesso à UFRR aos 18 anos, o Processo Seletivo Específico para Indígenas (PSEI), a internet, a inserção da comunidade no Facebook e os demais meios que proporcionaram visibilidade e atualização cultural para superar essas barreiras coloniais de uma nação individualista.

As práticas comunicacionais na comunidade indígena Truaru da Cabeceira evoluíram significativamente ao longo dos anos, refletindo as mudanças sociais, políticas e tecnológicas enfrentadas pelos povos indígenas em Roraima e em todo o Brasil. Desde a oralidade tradicional até a adoção da escrita e, mais recentemente, o uso da internet, a comunicação tem sido uma ferramenta crucial para a preservação da identidade cultural e a luta pelos direitos indígenas. Apesar dos desafios, a comunidade Truaru da Cabeceira continua a se adaptar e a resistir, utilizando todas as formas de comunicação disponíveis para garantir um futuro onde suas vozes possam ser ouvidas e respeitadas.

 

[i] Especialista em Gestão, Supervisão e Orientação Escolar, UNINTER, mestrando na PPG/COM/FAAC/UNESP-Bauru-SP. Contato: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4189951495353901

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).