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A realidade da pobreza nas comunidades das Quebradeiras de Coco Babaçu

A pesquisa aborda a multidimensionalidade da pobreza enfrentada pelas quebradeiras de coco babaçu, mulheres que dependem do extrativismo do babaçu nos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará. Além da falta de renda, enfrentam a expropriação de terras, conflitos fundiários, dificuldades de acesso a recursos naturais e serviços públicos. A expansão do agronegócio na região ameaça a subsistência dessas mulheres, que têm resistido por meio de movimentos sociais e leis locais que garantem o acesso aos babaçuais.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 4 mar. 2024

Fernando Souza, Milian Martins, Guilherme Ribeiro, Ronaldo Lima e Nelson de Moraes, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Câmpus de Tupã, examinam a complexa realidade da pobreza vivida pelas quebradeiras de coco babaçu. Essas mulheres, majoritariamente de origem indígena e afrodescendente, dependem do extrativismo do babaçu para sobreviver, mas enfrentam problemas estruturais que as mantêm em situações de extrema pobreza.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2020, no volume 6 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

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Apesar de adotar os compromissos internacionais de erradicação da pobreza, baseados na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil tem altas taxas de pobreza, especialmente nas áreas rurais. Classificado como um país de renda média-alta pelo Banco Mundial, o país apresenta grande disparidade de renda evidenciada por estatísticas oficiais.

De acordo com o IBGE, 48,9% da população rural vivia abaixo da linha de pobreza em 2018, o que equivale a 13,8 milhões de pessoas, sendo que 4,9 milhões viviam em extrema pobreza. As quebradeiras de coco babaçu, grupo de mulheres que praticam o extrativismo do babaçu em estados como Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará, está entre os mais vulneráveis.

A pobreza enfrentada por essas comunidades não é apenas financeira. Sofrem com a falta de acesso a recursos naturais e serviços públicos, como educação, saúde e saneamento básico. Tais privações exacerbam a situação de pobreza, que não pode ser vista apenas sob a ótica da insuficiência de renda. O conceito de pobreza multidimensional é, portanto, fundamental para entender a realidade das quebradeiras de coco babaçu.

O coco babaçu, oriundo das palmeiras que se espalham por vastas áreas do Norte e Nordeste do Brasil, é a base da subsistência das quebradeiras. Dele, elas extraem óleo, carvão e farinha, usados para alimentação, cosméticos, produtos de limpeza, além de servir como fonte de renda por meio da venda desses produtos. A palha e os talos da palmeira são também utilizados na construção de casas e na produção de artesanato.

Contudo, esse modo de vida está em risco devido à crescente pressão do agronegócio na região. A expansão das áreas de pastagem e monocultura, como a soja, tem devastado os babaçuais, reduzindo o acesso ao coco e, consequentemente, a renda das quebradeiras. Junto a isso, a concorrência de produtos substitutos, como o óleo de dendê, proveniente da Malásia, também pressiona os preços do óleo de babaçu, o que dificulta ainda mais a sustentabilidade da atividade extrativista.

As quebradeiras de coco babaçu vivem um dilema constante: por um lado, dependem dos babaçuais para a sobrevivência; por outro, enfrentam obstáculos legais e físicos para acessar essas áreas, muitas das quais estão em propriedades privadas. Mesmo quando conseguem acesso, frequentemente são obrigadas a repassar uma parte considerável de sua produção aos proprietários de terras ou a vender seus produtos a preços irrisórios.

Historicamente, a questão fundiária para as quebradeiras é marcada por conflitos. Grande parte dos babaçuais está em terras que foram privatizadas ao longo de décadas por fazendeiros e grileiros, inclusive com o apoio do Estado. Com isso, as mulheres enfrentam resistência por parte dos donos da terra, que tentam impedir o uso das palmeiras. As quebradeiras relatam casos em que foram atacadas por pistoleiros, tiveram suas colheitas destruídas ou que são forçadas a pagar pelo acesso ao coco, ficando à mercê dos interesses de grandes proprietários de terras.

Políticas públicas que favorecem o agronegócio, como a Lei Sarney de Terras, que incentivou a privatização de grandes áreas de terras públicas no Maranhão, beneficiando fazendeiros e desestimulando o uso tradicional das terras pelas quebradeiras contribuem para a piora da situação das extrativistas. O processo de expropriação e concentração fundiária tem ameaçado a existência de comunidades extrativistas, que dependem dos recursos naturais para sua subsistência.

Queimadas e desmatamento para expansão das áreas de pastagem e plantação de soja também têm contribuído para a destruição dos babaçuais. Segundo dados do MAPBIOMAS, entre 1985 e 2018, houve uma significativa redução nas áreas de babaçuais devido à conversão para pastagem e monoculturas mecanizadas. Isso impede a regeneração das palmeiras e, consequentemente, dificulta o extrativismo.

Os autores enfatizam que a pobreza enfrentada pelas quebradeiras de coco babaçu é multidimensional. Elas não são apenas financeiramente pobres; enfrentam também privações no acesso à educação, saúde, saneamento básico e recursos naturais. De acordo com estudos mencionados no texto, o analfabetismo entre as quebradeiras é alto, chegando a 56% em algumas regiões. Há também relatos de mulheres que sofrem de doenças relacionadas à atividade de quebra de coco, mas que enfrentam dificuldades para acessar cuidados médicos adequados.

A moradia também é precária. Embora algumas famílias vivam em casas de alvenaria, muitas ainda moram em casas de taipa sem escritura, o que as coloca em uma posição vulnerável em termos de posse de terra. O acesso a serviços básicos, como água encanada e saneamento, está vinculado à posse da terra, o que torna ainda mais difícil para as quebradeiras que não possuem propriedade acessar esses serviços.

Tais condições mostram que a pobreza das quebradeiras não pode ser resolvida apenas com transferência de renda. Embora programas como o Bolsa Família tenham ajudado a complementar a renda das extrativistas, não atacam a raiz dos problemas que perpetuam a pobreza. Sem acesso à terra e aos recursos naturais, as quebradeiras continuam presas em um ciclo de dependência e vulnerabilidade.

Diante de tal realidade, as quebradeiras de coco babaçu têm se organizado em movimentos sociais para lutar por seus direitos. Um dos principais marcos dessa luta foi a criação do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), o qual reúne mulheres dos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará.

Entre as conquistas desse movimento está a aprovação de leis municipais de “babaçu livre”, que garantem o acesso das mulheres aos babaçuais, mesmo quando localizados em propriedades privadas. Essas leis subvertem o direito de propriedade ao subordiná-lo ao interesse coletivo, reconhecendo a importância do babaçu para a subsistência e a cultura das mulheres. No entanto, o MIQCB ainda enfrenta resistência para aprovar uma lei nacional que garanta esses direitos em todo o território brasileiro.

Outra conquista importante do MIQCB é a inclusão das quebradeiras em programas governamentais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que garantem mercado para os produtos derivados do babaçu. Além disso, o movimento tem promovido a criação de cooperativas, como a Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco (COPPALJ), que busca melhorar a comercialização dos produtos do babaçu e fortalecer a economia local.

No entanto, apesar das conquistas obtidas por meio da organização social, o futuro das quebradeiras de coco babaçu continua incerto. A expansão do agronegócio e a falta de políticas públicas que reconheçam a complexidade da pobreza multidimensional que essas mulheres enfrentam são grandes desafios. Os pesquisadores argumentam que, para combater a pobreza nas comunidades tradicionais, é necessário adotar uma abordagem que vá além da simples transferência de renda. É fundamental que as políticas públicas levem em conta fatores como território, cultura e meio ambiente, reconhecendo a importância do modo de vida das comunidades e seu direito de acesso aos recursos naturais.

A luta das quebradeiras de coco babaçu é um exemplo emblemático da resistência de comunidades tradicionais no Brasil, que buscam não apenas sobreviver, mas manter sua cultura e dignidade diante das pressões econômicas e ambientais.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).