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Quebradeiras de Coco Babaçu: luta e mobilização

Estudo da Universidade Federal do Tocantins (UFT) destaca a luta das quebradeiras de coco babaçu do Bico do Papagaio, Tocantins, por direitos econômicos, sociais e territoriais. Essas mulheres enfrentam a pressão do agronegócio enquanto defendem o acesso livre aos babaçuais, fundamentais para sua subsistência e preservação cultural. Lideradas por Dona Raimunda Gomes da Silva, organizaram-se em movimentos como o Babaçu Livre, alcançando importantes vitórias. No entanto, ainda enfrentam desafios significativos, como a privatização de terras e a contínua invisibilidade social.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 8 maio 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2020, no volume 6 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Milena Botelho Azevedo Lena e Francisco Gilson Rebouças Pôrto Júnior, Universidade Federal do Tocantins (UFT), descrevem o contexto histórico e social que deu origem ao movimento quebradeiras de coco babaçu (Figura 1b e 1c) no Bico do Papagaio, região de transição amazônica localizada no estado do Tocantins.

Esse grupo de mulheres extrativistas se tornou símbolo de resistência no Brasil, protagonizando uma longa batalha por direitos econômicos, sociais e territoriais. O movimento das quebradeiras reflete um enfrentamento histórico contra o agronegócio e a especulação imobiliária, que ameaçam os territórios e a cultura das comunidades tradicionais as quais dependem do babaçu para a sobrevivência.

O coco babaçu, fruto da palmeira nativa da Amazônia (Figura 1a), sempre desempenhou papel central na vida das extrativistas. Ele provê sustento às famílias e faz parte de um ciclo agroextrativista que envolve o uso integral do fruto: da casca se faz carvão, da amêndoa se extrai o óleo e o leite, e o mesocarpo é transformado em farinha nutritiva. No entanto, a destruição dos babaçuais, promovida principalmente por latifundiários, representa uma ameaça tanto à subsistência das quebradeiras como à continuidade de suas práticas culturais.

Os autores contextualizam historicamente o papel marginalizado da mulher na sociedade, ressaltando que, embora estejam presentes em diversas atividades laborais, elas continuam a sofrer com desvalorização e invisibilidade. Esse fenômeno se reflete de maneira particular nas quebradeiras de coco babaçu, cujo trabalho, apesar de ser essencial para a economia local e para a sustentabilidade ambiental, é sistematicamente desconsiderado pelas autoridades e pelos grandes interesses econômicos.

A luta dessas mulheres por melhores condições de trabalho e por reconhecimento social começou a ganhar visibilidade na década de 1980, quando figuras como Raimunda Gomes da Silva (Figura 1d), mais conhecida como Dona Raimunda, assumiram a liderança do movimento. Dona Raimunda, descrita pelos autores como uma figura de temperamento forte e habilidades diplomáticas, foi fundamental para a criação do Movimento Babaçu Livre, que tinha como objetivo garantir o acesso livre aos babaçuais e evitar a destruição das palmeiras.

Figura 1 – (a) Amêndoas do babaçu; (b) Quebradeira abrindo o coco com machado e porrete; (c) Grupo de quebradeiras indo trabalhar; (d) Raimunda Gomes da Silva

Fonte: Lena e Porto Júnior (2020).

O movimento nasceu em meio a um cenário de violência e disputas territoriais. Os babaçuais, passaram a ser alvo de grandes fazendeiros e grileiros interessados em expandir a fronteira agrícola. Essas terras, que há décadas eram utilizadas pelas comunidades agroextrativistas, começaram a ser privatizadas, e as quebradeiras se viram impedidas de acessar os babaçuais. O Movimento Babaçu Livre surgiu como uma resposta direta a esse processo de expropriação, lutando pela preservação dos babaçuais e pelo reconhecimento das quebradeiras como sujeitas de direitos.

A organização das extrativistas foi possível graças ao apoio de sindicatos, associações de trabalhadores rurais e da Igreja Católica, que tiveram papel fundamental na criação de redes de solidariedade e na articulação política do movimento. A participação das mulheres em sindicatos e em associações rurais marcou uma virada importante, pois antes disso os espaços de representação política eram dominados pelos homens.

Uma das maiores conquistas do movimento foi a aprovação da primeira Lei Municipal do Babaçu Livre, em 1997, no município de Lago do Junco, Maranhão. A legislação garantiu às quebradeiras o direito de acessar as áreas de babaçu, mesmo em propriedades privadas, e proibiu a derrubada das palmeiras, que eram frequentemente cortadas pelos fazendeiros para dar lugar à pecuária e à monocultura de soja. Essa vitória foi resultado de anos de mobilização e articulação política, mas, não encerra a luta das quebradeiras.

A comunicação popular empregada como instrumento de luta e resistência é de grande relevância para as extrativistas. A partir dos anos 1980, as quebradeiras começaram a se organizar em torno de eventos comunitários, reuniões nas igrejas e colheitas coletivas, criando espaços de partilha e de construção de estratégias. Um dos momentos mais marcantes desse processo foi a produção do documentário “Raimunda, a quebradeira”, dirigido por Marcelo Silva, em 2006, que trouxe à tona as histórias de resistência e os desafios enfrentados pelas quebradeiras.

O documentário foi uma ferramenta de denúncia e um meio de fortalecer a identidade e o protagonismo das mulheres extrativistas. O filme deu visibilidade internacional à causa das quebradeiras, sendo exibido em diversas regiões do Brasil e até em países como a França. Além disso, o relacionamento próximo entre o diretor e as quebradeiras possibilitou uma representação fiel das vivências dessas mulheres, algo essencial para a construção de narrativas que promovam a transformação social.

Outro aspecto relevante, é a luta das quebradeiras pela preservação da biodiversidade. Os pesquisadores mostram que a defesa dos babaçuais vai além da questão econômica, estando profundamente ligada à preservação dos saberes tradicionais e à manutenção da identidade cultural das comunidades. Para as quebradeiras, o babaçu não é apenas uma fonte de renda, mas um elo que as conecta à sua ancestralidade e ao território.

A destruição dos babaçuais, portanto, representa uma ameaça e simbólica, pois compromete a transmissão de conhecimentos tradicionais que são passados de geração em geração. Por isso, as gerações mais velhas têm grande importância na preservação desses saberes.

O estudo também aponta os desafios econômicos enfrentados pelas quebradeiras, que, apesar das conquistas alcançadas com a aprovação de legislações como a Lei do Babaçu Livre, continuam a sofrer com a precariedade do trabalho. O valor pago pelo quilo do coco babaçu é baixo e a cadeia de comercialização é dominada por intermediários que lucram com a exploração do trabalho das quebradeiras. O modelo econômico imposto pelo agronegócio torna difícil para essas mulheres competir em um mercado que privilegia grandes produtores.

Além disso, a privatização de terras continua a ser uma realidade alarmante, e muitos dos babaçuais estão cercados por propriedades privadas. A pesquisa destaca que, em algumas situações, as quebradeiras chegam a pagar para acessar as terras onde se encontram as palmeiras, situação que agrava ainda mais sua vulnerabilidade econômica.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).