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Ciganos, entre o esquecimento e a discriminação

Pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) apresentam uma visão sobre a história e a cultura cigana que, apesar do reconhecimento oficial como comunidade tradicional, enfrenta marginalização e desconhecimento generalizado de sua cultura.

Por Victor Hugo Silva Souza[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Bauru-SP | 28 ago. 2024.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 10 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: Trabalhos de Pesquisa e de Extensão Universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Ricardo Alexandre de Araujo Monteiro Lobo e Laise de Holanda Cavalcanti Andrade, da UFPE, fornecem uma visão sobre a história e a cultura cigana em um cenário que compreender as especificidades do povo cigano ao redor do mundo não é tarefa fácil, pois as comunidades não possuem tradição escrita – a língua destes povos é conhecida como romani ou chib, e a transmissão dos saberes se dá por meio da oralidade, já que se trata de uma língua ágrafa.

Originários do Noroeste da Índia, os ciganos migraram para os Balcãs, entre os séculos X e XVIII, e posteriormente para a Europa Ocidental (Figura 1). Estudos linguísticos e genéticos confirmam essa origem indiana, reforçada pela presença de dialetos neo-hindus. Ao chegarem à Europa, os ciganos enfrentaram discriminação severa. Lendas populares os associavam a práticas como canibalismo e sequestro de crianças, estereótipos que agravaram seu isolamento.

Figura 1 - Hipótese mais aceita para a diáspora dos ciganos do século X ao XVIII

Fonte: Lobo; Andrade (2021).

Na Península Ibérica, os ciganos chegaram provavelmente pelo estreito de Gibraltar ou pelos Pirineus, com registros datando do século XV. Em Portugal, começaram a ser deportados para o Brasil ainda no século XVI, como parte de uma política de expulsão de “malfeitores”.

Ainda no século XVI, na cidade de Salvador (BA), são feitos os primeiros registros tratando da presença da etnia no país. Esses primeiros ciganos contribuíram para a formação das comunidades ciganas no Brasil, onde enfrentaram novos desafios, mas também influenciaram a cultura local. Entre os séculos XVII e XVIII a coroa portuguesa determinou que fossem radicados nas capitanias de Pernambuco e Bahia, junto a outras categorias de malfeitores, até então, todos oriundos da Península Ibérica. A pressão governamental no fim do Império e na Primeira República levou diversos grupos de ciganos a se tornarem sedentários, seja em comunidades rurais seja em meio urbano.

A identidade cigana é fortemente centrada em valores espirituais e materiais, tendo sido altamente influenciada pelos contatos culturais ao longo de sua história. As relações de parentesco e o respeito pelos idosos são pilares fundamentais da organização social cigana. Os idosos são considerados repositórios vivos da história e das tradições, e sua morte é comparada à perda de uma biblioteca.

Estudos recentes indicam a existência de uma população de mais de 800.000 ciganos no Brasil, espalhados por mais de vinte estados do país, a grande maioria nas regiões Nordeste e Sudeste. Estabelecem-se especialmente em cidades com população entre 20 e 50 mil habitantes, concentrando-se nas periferias desses municípios. As mulheres declaram-se, quase sempre, como artesãs, enquanto os homens são, em sua maioria, comerciantes.

Dados do IBGE de 2011 indicam a existência de 291 acampamentos ciganos (Figura 2) em todo o país, concentrados principalmente em estados como Bahia, Goiás e Minas Gerais. Contudo, esses números são provavelmente subestimados devido à natureza seminomádica de algumas comunidades e ao medo da discriminação.

Figura - Distribuição das comunidades ciganas, por município - Brasil, 2011

Fonte: Lobo; Andrade (2021).

Em Pernambuco, por exemplo, o número de municípios com comunidades ciganas é maior do que o registrado oficialmente, com estudos locais identificando a presença de ciganos em 22 municípios. Essa discrepância ilustra a dificuldade em mapear e entender plenamente a população cigana no Brasil.

Entre os grupos ciganos, destacam-se os Rom, Sinti e Calon, cada um com características culturais e linguísticas distintas. No Brasil, a maioria dos ciganos pertence ao grupo Calon, que tem se adaptado às regiões em que vivem, incorporando aspectos da cultura local em sua música, vestimenta e religião.

No entanto, essa adaptação não significa a perda total de sua identidade. Os ciganos mantêm práticas tradicionais, como o uso de plantas medicinais, apesar de muitas dessas tradições estarem em risco de desaparecer devido à sedentarização e à influência da sociedade moderna.

Relatos da pesquisa evidenciam que, no Brasil, as famílias ciganas geralmente vivem em condições precárias, com acesso limitado a serviços básicos como água encanada e saneamento. A desconfiança e o preconceito por parte das autoridades e da população local complicam ainda mais a sua situação. Por exemplo, a associação entre ciganos e criminalidade é um estereótipo comum, levando a perseguições injustas e perda de oportunidades, como o emprego.

Junto a isso, o futuro dessas tradições está em risco. A juventude cigana, influenciada pela modernidade e pela necessidade de inclusão na sociedade, mostra pouco interesse em aprender sobre as práticas tradicionais. A perda da cultura nômade, uma das características mais marcantes dos ciganos, está associada a essa mudança. Um exemplo deste fenômeno é a preferência dos jovens por medicamentos farmacêuticos às ervas medicinais tradicionais, traço cultural bastante relevante nas gerações anteriores.

Apesar de tais impasses, houve avanços no reconhecimento e na inclusão dos ciganos no Brasil. O Decreto de 25 de maio de 2016, que instituiu o Dia Nacional do Cigano em 24 de maio, marcou o início do reconhecimento oficial dos ciganos como uma comunidade tradicional com direitos específicos. Além disso, políticas públicas, como a regulamentação da não obrigatoriedade de domicílio permanente para a obtenção do Cartão Nacional de Saúde, foram implementadas para atender às necessidades dessa população.

A grande maioria dos ciganos brasileiros e da etnia Calons, costumeiramente nômades. Porém, em razão do alta taxa de analfabetismo, entre outros fatores, os Calons têm deixado o nomadismo, a fim de que os jovens tenham acesso à educação formal. Vale frisar ainda que, embora nascidos no Brasil, a maioria dos ciganos não se entendem como brasileiros.

Para os pesquisadores, diante deste quadro, compreender as necessidade e especificidades dos grupos ciganos no Brasil possibilitaria a melhor inserção desses grupos na sociedade brasileira, assim como reflexões acerca de aspectos como saúde e educação do povo cigano.

 

[i] Mestrando em Ciências (Área: Agronegócio e Desenvolvimento), PGAD, Unesp -Câmpus de Tupã.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).