NOTÍCIAS

Comunidade Quilombola de Lajeado, Dianópolis-TO: construção histórica e saberes ancestrais

A construção histórica dos saberes ancestrais, da identidade, das práticas cotidianas e da luta pela preservação do território da Comunidade Quilombola de Lajeado, localizada em Dianópolis, Tocantins, foi tema de estudo de pesquisadoras do Toocantins. O estudo revelou que a comunidade mantém suas tradições por meio de práticas como festas religiosas, danças, músicas e culinária, transmitidas de geração em geração e que, diante de desafios como a perda de terras e conflitos com fazendeiros, a comunidade se organizou politicamente para reivindicar direitos e proteger o território.

Por Jardilene Gualberto P. Fôlha[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Bauru-SP | 28 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2018, no volume 1 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

A pesquisa é estruturada em três eixos principais. O primeiro examina conceitos identitários, como comunidades tradicionais, quilombos, comunidades quilombolas e territorialidade. O segundo eixo narra o histórico da Comunidade Quilombola de Lajeado, desde sua origem e a influência do ciclo do ouro na região norte de Goiás até a questão da territorialidade, a descendência das famílias de Leandro Bispo e Paulinha Furtado, e a organização política da Associação da Comunidade.

O terceiro eixo foca nas práticas cotidianas e nos saberes culturais da comunidade, evidenciados em suas relações de reciprocidade, festas religiosas e culturais. Essas práticas incluem a Festa de Reis, o Terço de São José, as festas juninas, além de manifestações culturais como música, dança, culinária e medicina popular. Esses elementos refletem a identidade cultural e a relação com a biodiversidade local, fundamentais para a sobrevivência e bem-estar dos quilombolas.

A Comunidade Quilombola de Lajeado

De acordo com Celenita Bernieri, da Prefeitura Municipal de Dianópolis, e Jardilene Fôlha, da Prefeitura Municipal de Palmas, a Comunidade Quilombola de Lajeado e composta por 35 famílias, das quais 10 ainda residem no território. Situada no município de Dianópolis, a 327 km de Palmas, capital do Tocantins, a comunidade está cercada por desafios ambientais, como a escassez de água, e por conflitos territoriais com fazendeiros e grileiros.

O vínculo da comunidade com seu território é profundo e histórico. Conhecida como "Terra dos Pretos", Lajeado é uma área onde a identidade quilombola foi construída e mantida ao longo de gerações. Esse território é tanto um espaço físico, como um símbolo da resistência cultural e social do grupo, que tem suas raízes no século XIX, quando Leandro Bispo e Paulina Furtado adquiriram as primeiras terras na região.

Para entender a relevância da Comunidade Quilombola de Lajeado, é fundamental compreender os conceitos de quilombo e comunidade tradicional. As comunidades tradicionais, de acordo com o Decreto 6.040/2007, são grupos culturalmente diferenciados que mantêm formas próprias de organização social, utilizam recursos naturais para sua reprodução cultural e social, e transmitem conhecimentos e práticas de geração em geração.

O conceito de quilombo, por sua vez, evoluiu ao longo do tempo. Originalmente, quilombos eram refúgios formados por escravos fugitivos. No entanto, a definição contemporânea de quilombo, reconhecida pela Constituição Brasileira de 1988, inclui comunidades que, apesar de não terem sido formadas diretamente por escravos fugitivos, mantêm laços ancestrais e culturais com essa história de resistência. A territorialidade, ou seja, a relação simbólica e material que esses grupos têm com a terra, é um elemento crucial para sua identidade.

A Comunidade de Lajeado é um exemplo de ambos os conceitos. Sua história está intimamente ligada à história da exploração do ouro e à criação de gado no norte de Goiás, região que hoje corresponde ao estado do Tocantins. No início do século XIX, com a crise da mineração de ouro, muitos negros que trabalhavam nas minas fugiram ou formaram quilombos.

O território da comunidade é fragmentado, resultado de décadas de cercamentos de terras e conflitos com fazendeiros. Essa fragmentação não é apenas física, mas social, pois muitas famílias quilombolas foram forçadas a deixar suas terras em busca de trabalho e educação em outras regiões. Apesar disso, a comunidade mantém um forte vínculo com seu território ancestral, um lugar marcado pela presença de mangueiras centenárias e antigas minas de ouro, que são símbolos da ocupação e resistência histórica dos quilombolas e da adaptação às adversidades.

Ao longo dos séculos, as terras de Lajeado foram divididas entre os descendentes de Leandro Bispo e Paulinha Furtado, que as adquiriram ainda no século XIX. No entanto, grande parte dessas terras foi perdida para terceiros, o que deixou a comunidade com um território limitado para o cultivo e a sobrevivência. Essa perda territorial é um dos principais desafios enfrentados pela comunidade, que luta para manter sua identidade e modo de vida em um cenário de constante pressão externa.

Práticas culturais e saberes ancestrais

A riqueza cultural da Comunidade Quilombola de Lajeado se manifesta em suas práticas cotidianas e saberes ancestrais, os quais são fundamentais para a manutenção da identidade quilombola e incluem festas religiosas, danças, músicas, culinária e medicina popular.

Uma celebração tradicional que ocorre no início de janeiro é a Festa de Reis. Durante a festa, os membros da comunidade expressam sua devoção através de rituais que incluem cantos, danças e a preparação coletiva de alimentos. Essa celebração, mais do que um evento religioso; é um momento de fortalecimento dos laços comunitários e de reafirmação da identidade cultural.

Outra festa importante é o Terço de São José, comemorado em 19 de março, que reúne fiéis de toda a região para rezar e celebrar em comunidade. A Festa Junina, tradicionalmente celebrada por cada família em sua própria casa, também foi resgatada pela juventude da comunidade em 2017, consolidando-se como um evento coletivo que reforça a identidade quilombola.

Músicas e danças tradicionais são também expressões da resistência cultural da comunidade. A catira, dança que combina a batida dos pés e das mãos com o canto e o toque de viola e pandeiros, tem suas letras criadas, muitas vezes, pelos próprios moradores e refletem a história e as experiências da comunidade. A sussia, por seu turno, uma dança de origem quilombola transmitida de geração em geração, é outro símbolo cultural da comunidade. As músicas e danças são apresentadas durante festas religiosas e eventos culturais como uma forma de manter viva a tradição e de transmitir valores culturais às novas gerações.

Outro aspecto importante da identidade cultural de Lajeado é a culinária. Baseada em ingredientes cultivados localmente, como arroz, milho, feijão, pequi e buriti, a culinária quilombola reflete a relação da comunidade com a terra e seus recursos naturais. Pratos tradicionais, como o bolo quebrador e o bolo de arroz, são preparados seguindo receitas transmitidas pelos antepassados. Além de uma prática cotidiana, a culinária é uma forma de preservar e celebrar a cultura quilombola. Durante as festas, os alimentos são preparados coletivamente, reforçando os laços comunitários e a importância da partilha.

Ao utilizar plantas e ervas medicinais para tratar doenças e manter a saúde, a medicina popular na comunidade também se fortalece. As matriarcas e patriarcas desempenham papel crucial na transmissão desses tipos de saberes, ensinando os mais jovens sobre o uso de plantas como o buriti e o pequi para fins medicinais.

Preservação territorial e resistência cultural

Desde 2011, a comunidade se organizou politicamente para enfrentar as ameaças de invasão e perda de terras. A criação da Associação dos Agricultores e Agricultoras Familiares da Comunidade Quilombola Lajeado foi um marco importante nesse processo, permitindo à comunidade reivindicar direitos e buscar apoio de organizações externas.

A organização política trouxe oportunidades para a comunidade, como o fortalecimento das práticas culturais e a busca por reconhecimento legal. Em 2011, a comunidade obteve a certificação de autodefinição como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares, e em 2014, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) iniciou a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação Antropológico da comunidade.

A luta pela preservação territorial é uma luta pela preservação da identidade cultural. A comunidade de Lajeado está ciente de que, para garantir um futuro para as próximas gerações, é essencial manter viva a memória coletiva e as tradições culturais. As matriarcas e patriarcas desempenham papel fundamental nesse processo, transmitindo saberes e valores culturais às novas gerações.

Os resultados da pesquisa indicam que a comunidade se revela como um corpo social fortalecido pela reciprocidade entre seus membros. Apesar das dificuldades enfrentadas, a comunidade tem resistido culturalmente, mantendo viva sua identidade e preservando os vínculos com seus territórios ancestrais.

 

[i] Doutoranda em Educação na Amazônia - PGEDA/UFT. Mestre em Educação - PPGE/UFT. Professora do Município de Palmas (SEMED/Palmas). Pesquisadora dos grupos de pesquisas: CNPQ Gepce/UFT-TO e GEDGS/UNESP-SP. Membro da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Povos Originários e Comunidades Tradicionais (RedeCT). Membro da Comunidade de Remanescente Quilombola Lajeado (TO). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).