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Evolução histórica, direito e política pública territorial quilombola no Brasil

Pesquisadores de São Paulo e Tocantins traçam a transformação histórica, os desafios legais e as políticas públicas relacionadas aos territórios quilombolas no Brasil. Abordam a luta contínua das comunidades quilombolas pela titulação de suas terras, destacam as conquistas e as dificuldades na implementação dos direitos territoriais garantidos pela Constituição de 1988 e discutem o papel das organizações públicas e da sociedade civil na proteção desses territórios. Sublinham também a importância das ações afirmativas para combater as desigualdades raciais e preservar a identidade cultural quilombola.

Por Jardilene Gualberto P. Fôlha[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Bauru-SP | 28 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2018, no volume 2 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Os pesquisadores[iii] partem de uma análise interdisciplinar, que combina história, antropologia e sociologia, para sintetizar os direitos territoriais estabelecidos por legislações vigentes e analisar as condições organizacionais e as políticas públicas de ação afirmativa voltadas aos quilombolas.

Contextualização

Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), as mais de 6.000 comunidades quilombolas no Brasil enfrentam um desafio contínuo para garantir direitos territoriais, reconhecidos na legislação, mas frequentemente negligenciados na prática.

Desde o período colonial, os quilombos surgiram como espaços de resistência à escravidão. Esses territórios, muitas vezes localizados em áreas isoladas e de difícil acesso, tornaram-se refúgios para africanos escravizados que fugiam das fazendas e minas. Ao longo dos séculos, esses espaços proporcionaram abrigo e preservaram culturas, tradições e modos de vida que resistiram à opressão.

Com a abolição da escravatura em 1888, as comunidades quilombolas continuaram a enfrentar desafios significativos, particularmente no que diz respeito ao acesso e à posse da terra. Durante grande parte do século XX, as comunidades foram amplamente ignoradas pelo Estado, sem reconhecimento formal de seus direitos territoriais. Somente com a Constituição de 1988, o Brasil passa a reconhecer oficialmente tais direitos, marcando um avanço significativo na luta pela justiça social.

Legitimação territorial e conflitos fundiários

Os autores evidenciam que o território quilombola, além do conceito de terra, engloba identidades coletivas, saberes, culturas, hábitos, relações de parentesco, símbolos, costumes, representações e tradições que definem o modo de vida das comunidades que nele habitam.

A territorialidade quilombola deve ser entendida como uma relação complexa e multifacetada entre sociedade, espaço e tempo. O território é mais do que apenas uma porção de terra; ele representa a história, a cultura e a identidade das comunidades que o ocupam. Portanto, a perda de território significa muito mais do que a perda de um espaço físico; é uma ameaça direta à continuidade cultural e social dessas comunidades.

Diante disso, a Constituição Federal de 1988 foi um marco incontestável na história dos direitos quilombolas no Brasil, pois o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) reconhece o direito à propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas, determinando que o Estado emitisse os títulos de propriedade respectivos. Este avanço constitucional abriu caminho para que as comunidades quilombolas pudessem reivindicar formalmente seus territórios, algo que até então era quase impossível.

Além da Constituição, várias outras legislações reforçam os direitos quilombolas. O Decreto nº 4.887, de 2003, é particularmente importante, pois introduz o critério de autoidentificação para o reconhecimento dos remanescentes de quilombos. No decreto, atribui-se ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a responsabilidade de identificar, reconhecer, delimitar, demarcar e titular os territórios quilombolas. Ressalta-se que o reconhecimento legal é fundamental para a proteção dos territórios quilombolas contra invasões e conflitos fundiários.

Outro marco importante é a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2002 e promulgada em 2004. Esta convenção reconhece os direitos de propriedade e posse sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas e tribais, incluindo os quilombolas, e exige que os governos adotem medidas para salvaguardar tais direitos.

No entanto, apesar desse arcabouço legal robusto, a implementação dos direitos territoriais quilombolas enfrenta grandes desafios. A morosidade na demarcação e titulação das terras é um dos principais problemas. Portanto, a prática muitas vezes fica aquém das expectativas, devido às limitações administrativas, orçamentárias e políticas, tal que o processo de titulação se torna longo e complexo. Muitas comunidades esperam anos, ou até décadas, para obter títulos de propriedade.

Além disso, a defesa do território quilombola é marcada por conflitos constantes, especialmente com grileiros, mineradoras, empresas agropecuárias e imobiliárias. Os interesses de tais atores frequentemente se sobrepõem aos direitos das comunidades, resultando em confrontos que colocam em risco a segurança e a sobrevivência das comunidades.

Em muitos casos, os conflitos fundiários são exacerbados pela falta de demarcação e titulação das terras. Sem os documentos legais, as comunidades quilombolas estão vulneráveis a invasões e despejos forçados. Junto a isso, a ausência de uma regulamentação clara e eficaz para a proteção dos territórios quilombolas permite que interesses econômicos poderosos pressionem o Estado a retardar ou até impedir a titulação das terras.

Atores relevantes na questão fundiária quilombola

As políticas públicas territoriais para quilombolas envolvem diversas organizações, como o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a Fundação Cultural Palmares (FCP) e o INCRA. Em conjunto, estes atores têm a responsabilidade de implementar as políticas voltadas para a regularização dos territórios quilombolas, mas enfrentam obstáculos significativos, especialmente após as mudanças políticas e administrativas verificadas à época da pesquisa.

O MDA, criado para promover a reforma agrária e apoiar o desenvolvimento rural, desempenhou papel importante na implementação das políticas territoriais quilombolas até sua extinção em 2016 – atualmente foi recriado sob o nome Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. Em 2016, as funções do ministério haviam sido transferidas para a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário, dentro da Casa Civil da Presidência da República, o que obstaculizou ainda mais a execução das políticas devido à falta de um órgão específico e dedicado à causa quilombola.

A Fundação Cultural Palmares, por sua vez, é vinculada ao Ministério da Cultura, sendo responsável pela promoção e preservação da cultura afro-brasileira. Apesar de seu papel ser fundamental para o reconhecimento da identidade quilombola, devido às restrições orçamentárias e à falta de autonomia administrativa, a Fundação enfrentou desafios em garantir a implementação efetiva das políticas culturais e territoriais até 2022.

Demarcar e titular os territórios quilombolas é o papel do INCRA. Contudo, o processo conduzido pelo INCRA é frequentemente lento e burocrático, com muitas etapas que podem levar anos para serem concluídas. A falta de recursos e pessoal especializado também dificultam ainda mais a capacidade do órgão de cumprir suas funções de forma eficaz.

Já a sociedade civil organizada tem desempenhado um papel fundamental na luta pelos direitos quilombolas. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), criada em 1996, é uma das principais organizações representativas das comunidades quilombolas no Brasil. A CONAQ mobiliza as comunidades em todo o país, promovendo debates e ações que buscam garantir a efetivação dos direitos quilombolas.

As coordenações estaduais e as associações comunitárias também trabalham para fortalecer a pluralidade étnica do Brasil, oferecendo assessoria e apoio às comunidades em suas demandas junto aos órgãos públicos, além de promoverem o protagonismo das mulheres e dos jovens quilombolas, incentivando a participação ativa na luta por direitos.

Além de atuar na defesa dos direitos territoriais, as associações comunitárias buscam promover o desenvolvimento sustentável das comunidades quilombolas por meio do desenvolvimento de projetos que visam melhorar a qualidade de vida nas comunidades. Focam em preservar ao mesmo tempo as tradições culturais e modos de vida e, notavelmente, são responsáveis por solicitar a emissão da Certidão de Autorreconhecimento pela Fundação Cultural Palmares, um passo crucial no processo de titulação das terras.

Ações afirmativas

No Brasil, as ações afirmativas são fundamentais para corrigir as desigualdades raciais e garantir a inclusão social de grupos historicamente marginalizados, como os quilombolas. Políticas afirmativas visam promover a igualdade de oportunidades e combater o preconceito e a discriminação racial. Entretanto, a implementação das ações afirmativas enfrenta resistência em vários setores da sociedade, que muitas vezes veem tais políticas como privilégios indevidos.

De acordo com a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), as ações afirmativas se sustentam sobre o conceito de equidade, expresso na Constituição, que impõe à sociedade o tratamento igualitário entre todos. Por isso, as políticas afirmativas não são benefícios, mas uma necessidade diante das injustiças históricas que persistem no país. Para compreender a nessecidade dessas, é preciso considerar o contexto histórico de desigualdade e discriminação racial no Brasil.

O estudo sinaliza que a luta pelos direitos territoriais quilombolas é uma questão de justiça social e de reconhecimento histórico. Embora o Brasil tenha avançado significativamente no reconhecimento desses direitos desde a Constituição de 1988, a implementação ainda está longe de ser ideal. A morosidade no processo de demarcação e titulação das terras, juntamente com a falta de recursos e vontade política, são os principais obstáculos que impedem a plena realização dos direitos quilombolas.

Com isso, o Estado brasileiro precisa fortalecer a capacidade administrativa e orçamentária para implementar as políticas de maneira eficaz. Também é fundamental que as organizações da sociedade civil continuem a mobilizar e defender os direitos das comunidades quilombolas, garantindo que as vozes quilombolas sejam ouvidas e seus direitos respeitados.

Pode-se dizer que nem todas as colunas do tripé – território, organizações e políticas públicas – oferecem a sustentabilidade necessária para o desenvolvimento das comunidades quilombolas, que têm se esforçado para cumprir os direitos garantidos por lei. Em linhas gerais, a discussão sobre os direitos territoriais dos quilombolas brasileiros não traz novidades. Historicamente, o povo quilombola foi constituído na ilegitimidade de seus direitos, desde que, pela primeira vez, teve o direito de permanecer em seus territórios de origem usurpado, sendo deixado em condições sub-humanas.

 

[i] Doutoranda em Educação na Amazônia - PGEDA/UFT. Mestre em Educação - PPGE/UFT. Professora do Município de Palmas (SEMED/Palmas). Pesquisadora dos grupos de pesquisas: CNPQ Gepce/UFT-TO e GEDGS/UNESP-SP. Membro da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Povos Originários e Comunidades Tradicionais (RedeCT). Membro da Comunidade de Remanescente Quilombola Lajeado (TO). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

[iii] Bruno R. Carvalho Pires, da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS); Celenita G. Pereira Bernieri, da Prefeitura Municipal de Dianópolis; Jardilene G. Pereira Fôlha, da Prefeitura Municipal de Palmas; Nelson Russo de Moraes, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP – Câmpus de Tupã); e Francisco G. Rebouças Porto Júnior, da Universidade Federal do Tocantins (UFT).