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Criação artística de Isaias Miliano: o patrimônio roraimense em destaque

Pesquisadoras de Roraima investigam a obra do artista indígena Isaias Miliano, cuja arte está profundamente enraizada nas tradições culturais de Roraima, refletindo e ressignificando a identidade da região. Por meio de técnicas como o entalhe em madeira e a utilização de grafismos rupestres, Miliano combina elementos tradicionais e contemporâneos – uma expressão artística única. Além de preservar o patrimônio cultural roraimense, sua obra promove um diálogo sobre a importância do hibridismo cultural e da diversidade na arte contemporânea, sobretudo na perspectiva do sujeito indígena.

Por Fábio Andrade Dias[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Tupã - SP | 29 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 8 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

As professoras Acsa da Silva Ribeiro e Leila Adriana Baptaglin, do Sesc-Roraima e da Universidade Federal de Roraima (UFRR), respectivamente, desenvolveram pesquisa sobre a trajetória e a produção artística de Isaias Miliano, um renomado artista indígena de Roraima. Baseando-se tanto em uma revisão teórica como em pesquisa de campo, com entrevistas com o artista e a com a análise de uma de suas obras mais significativas, focaram em como a obra do artista se entrelaça com a identidade cultural da região. Com isso, oferecem um olhar sobre o processo criativo de Miliano e a relevância de seu trabalho para a preservação e valorização do patrimônio cultural roraimense.

Isaias Miliano (Figura 1) nasceu na Serra do Uiramutã, região situada na fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela. Filho de pai da etnia Macuxi e de mãe da etnia Patamona, Miliano ele se identifica principalmente como indígena Patamona e carrega em sua arte forte influência das raízes indígenas. Com a vida marcada por constante transição entre diferentes culturas e territórios, tendo residido em Porto Velho (RO), São Paulo (SP) e, atualmente, em Boa Vista (RR), sua arte reflete a pluralidade cultural por meio da combinação de elementos que representam o ambiente urbano e as tradições de seus ancestrais. O trânsito entre tais fronteiras se dá devido à realização de exposições em diversos locais, oportunidade em que troca experiências com outros artistas.

Figura 1 - Artista em seu processo de criação

Fonte: Ribeiro; Baptaglin (2021).

Miliano é um artista versátil, conhecido amplamente por seus entalhes em madeira, utilização de materiais reciclados ou encontrados nas ruas. Sua escolha de trabalhar com esses materiais é significativa por razões ecológicas e por ser um meio de se conectar ao passado e ao presente. Ao usar o que está disponível no ambiente urbano para criar obras que remetem às suas origens indígenas e ao patrimônio cultural da região Norte, especialmente de Roraima, faz uma ponte entre diferentes mundos e tempos, refletindo a complexidade da identidade cultural roraimense.

Para refletir sobre a arte de Miliano, as pesquisadoras utilizam conceitos como a subjetividade e a criatividade, elementos centrais no processo artístico do indígena. De acordo com Fayga Ostrower, uma das autoras citadas na pesquisa, todos os seres humanos possuem a capacidade criativa, que se manifesta de várias formas simbólicas, seja através da linguagem verbal, escrita ou visual. A arte, nesse sentido, é uma linguagem que revela a intenção do artista e sua singularidade, refletindo ao mesmo tempo experiências pessoais e coletivas. Miliano, portanto, funde sua visão individual e da cultura roraimense, resultando em criações que expressam tanto suas vivências pessoais quanto o contexto social em que está inserido.

Tal visão é complementada por Stuart Hall, outro teórico mencionado na pesquisa, cuja compreensão é a de que toda produção cultural é uma resposta ou interpretação de uma pessoa em determinada cultura. A arte de Miliano, neste caso, responde às complexidades da identidade roraimense, abordando temas como a memória, o hibridismo cultural e a relação entre o passado e o presente.

O conceito de hibridismo cultural é particularmente relevante para entender a arte de Miliano. Este conceito já foi visto de maneira negativa no passado e passou a ser valorizado como uma forma de celebrar a diversidade e a multiplicidade cultural. Na obra do artista estudado, o hibridismo fica evidente na incorporação de elementos de diferentes culturas, criando uma fusão única que representa a diversidade cultural de Roraima. O artista frequentemente utiliza mandalas em suas criações, por exemplo, um símbolo que não é originário da cultura indígena, mas que ele ressignifica em nas obras.

A abordagem híbrida é um reflexo da própria identidade cultural de Roraima, marcada pela confluência de diferentes povos e culturas. A arte de Miliano, assim, também transforma tal identidade, ao incorporar novas influências e ressignificar elementos tradicionais. Isso faz de sua obra uma expressão contemporânea da cultura roraimense, ao mesmo tempo em que preserva e valoriza as raízes indígenas.

Análise da Obra “Sol”

As autoras fornecem uma análise detalhada de uma das obras mais significativas de Miliano: a Mandala intitulada “Sol” (Figura 2). A obra faz parte da série “Elementos”, que explora temas relacionados aos grafismos rupestres encontrados em Roraima. A mandala “Sol” é um exemplo claro de como Miliano ressignifica elementos culturais antigos para criar novas formas de expressão artística.

Figura 2 - Mandala "Sol"

Fonte: Ribeiro; Baptaglin (2021).

Feita em madeira cedro, com entalhes em baixo relevo, a obra apresenta um acabamento que remete à cor dos desenhos rupestres. A escolha do Sol como tema central reflete a conexão de Miliano com a herança indígena, particularmente com a etnia Patamona, cujo nome significa “Herdeiros do Sol”. A Mandala “Sol” combina elementos tribais e formas abstratas, sendo ao mesmo tempo rica em simbolismo e esteticamente sofisticada.

A Mandala é uma estrutura central ao redor da qual o artista organiza outros elementos simbólicos, como figuras humanas estilizadas e desenhos indígenas. Essa combinação de elementos reflete o hibridismo cultural que caracteriza a identidade roraimense e destaca a habilidade de Miliano em ressignificar símbolos tradicionais em um contexto contemporâneo.

Segundo a conclusão das autoras, a obra de Isaias Miliano ilumina aspectos importantes da identidade cultural de Roraima e abre novos caminhos para a discussão sobre o papel da arte na preservação e valorização do patrimônio cultural. A Mandala “Sol” e outras obras de Miliano exemplificam como a arte pode servir como um meio poderoso de comunicação e expressão, oferecendo insights valiosos sobre a complexidade e a diversidade da cultura roraimense. Em última análise, a arte de Miliano não é apenas uma celebração da cultura roraimense, mas também uma contribuição significativa para o diálogo mais amplo sobre a identidade cultural no Brasil contemporâneo.

 

[i] Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Agronegócio e Desenvolvimento da Faculdade de Ciência e Engenharia (FCE), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp – Câmpus de Tupã). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).