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Cultura em movimento: uma perspectiva sobre o Tinku

O Tinku, ritual ancestral dos Andes bolivianos, envolve batalhas corporais entre grupos indígenas, oferecendo sangue à Pachamama. Apesar da influência do sincretismo religioso e da modernidade, o ritual ainda preserva tradições em comunidades isoladas como Macha, refletindo a resistência cultural das comunidades indígenas.

Por Luís Guilherme Costa Berti[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, Bauru-SP | 27 ago. 2024

O Doutor Renato Dias Baptista, integrante da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Povos Originários e Comunidades Tradicionais (RedeCT) e professor da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp - Câmpus de Tupã), dedicou-se a uma análise aprofundada das nuances do Tinku.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2023, no volume 12 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora Fi.

Contexto Histórico e Cultural

De início, Baptista realiza uma análise sobre a pluralidade cultural da América Latina, onde indica haver a presença significativa de povos indígenas. Segundo o autor, 45 milhões de indígenas pertencem a mais de 400 povos originários em todo o continente.

A Bolívia, foco da pesquisa, é um dos países mais marcados por essa diversidade. Possui 35 grupos indígenas, entre os quais os quechuas e aymaras formam a maioria. As estatísticas oficiais indicam que 62% da população boliviana é de origem indígena, fato que molda a identidade multicultural do país.

Essa diversidade cultural é fruto de séculos de história, marcada pela chegada dos conquistadores espanhóis, que causaram um brutal deslocamento no desenvolvimento das civilizações locais. O encontro entre o império espanhol e as culturas indígenas foi desigual, dominado pela vantagem tecnológica e militar dos colonizadores. Esse processo colonial gerou uma profunda mistura cultural, tanto no campo étnico como no religioso, persistente até hoje.

O Impacto do Colonialismo e a Luta pela Identidade

Valendo-se de uma citação de Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio, o pesquisador ilustrar a relação conflituosa entre a Bolívia e as potências coloniais por meio do relato de um um incidente ocorrido em 1870. Na ocasião, o o ditador boliviano Mariano Melgarejo humilhou um diplomata inglês, obrigando-o a beber uma quantidade excessiva de chocolate e desfilando-o em um burro pelas ruas de La Paz.

Este incidente simboliza a resistência boliviana à dominação estrangeira e o desprezo das potências imperialistas pela nação andina, que, segundo Galeano, "não existia" para os olhos do mundo imperialista”.

A narrativa de Galeano encapsula a luta histórica da Bolívia contra a exploração externa, destacando como a riqueza natural do país, em vez de beneficiar seu povo, tornou-se uma maldição.

A Bolívia, rica em recursos como gás natural e lítio, continua sendo um dos países mais pobres da América do Sul. Para o autor, a "riqueza fabulosa" da Bolívia condena seu povo a uma pobreza persistente, a qual se reflete em um ciclo de exploração e resistência que se repete ao longo dos séculos.

O Ritual do Tinku: Encontro e Conflito

No coração dessa complexidade cultural encontra-se o Tinku, um ritual indígena que simboliza a resistência cultural e a afirmação identitária. O termo "Tinku" significa "encontro" em quechua, e esse encontro se dá de forma ritualística. Nele, dois grupos antagônicos se enfrentam em uma batalha corporal. O sangue derramado nessas batalhas é uma oferenda à Pachamama, ou Mãe Terra, com o intuito de garantir boas colheitas e a fertilidade da terra.

O Tinku ocorre principalmente nos altos Andes bolivianos, região considerada o "coração" da América do Sul. Lá, quatro grandes bacias hidrográficas se encontram, alimentando importantes rios que fluem para diferentes partes do continente. Essa localização geográfica reforça o simbolismo do Tinku como um ponto de convergência cultural e espiritual.

Para o pesquisador, o Tinku não é apenas uma manifestação cultural, mas também um reflexo de tensões sociais profundas. As batalhas rituais servem para reafirmar o acesso à terra e testar as alianças entre os ayllus, que são comunidades indígenas organizadas. Nesse contexto, o Tinku é uma forma de resolver disputas internas e fortalecer laços comunitários, ao mesmo tempo em que mantém viva uma tradição ancestral.

Sincretismo Religioso e Influências Externas

O sincretismo, definido como a fusão de elementos culturais e religiosos distintos, é um tema central no capítulo. Desde a colonização, o sincretismo religioso foi um mecanismo de sobrevivência cultural para os povos indígenas da Bolívia.

Embora possua raízes pre-hispânicas, o Tinku foi incorporado ao calendário católico pelos colonizadores espanhóis, coincidindo com a celebração da Festa da Cruz. Esse processo de fusão religiosa é visível tanto nos rituais indígenas como nas práticas da Igreja Católica local.

Tal compreensão é reforçada pelas pesquisas do antropólogo italiano Massimo Canevacci quando argumenta que o sincretismo é a chave para compreender as transformações culturais na era da globalização.

Canevacci, segundo Baptista, afirma que o sincretismo não se limita à religião, mas permeia todos os aspectos da cultura, desde os rituais, as vestimentas até as interações sociais. No caso do Tinku, essa fusão cultural é evidente na coexistência de elementos tradicionais com influências modernas, como o uso de telefones celulares pelos participantes do ritual.

Além disso, o sincretismo religioso também se manifesta na maneira como a Igreja Católica em Macha interage com o Tinku. Durante o ritual, a imagem de Jesus é vestida com um poncho e um chicote, elementos típicos da cultura andina, simbolizando a fusão das tradições indígenas com o cristianismo. Essa mistura de elementos sagrados de diferentes culturas é uma característica central do sincretismo boliviano.

Mudança e Adaptação Cultural

Um dos temas abordados pela pesquisa diz respeito às mudanças culturais que afetam o Tinku. O autor observa que os trajes tradicionais do Tinku sofreram modificações significativas ao longo dos anos, com a introdução de novos designs e cores que refletem a influência externa. Essas mudanças, segundo alguns estudiosos, representam a destruição de uma "linguagem de símbolos" que sobreviveu por séculos, o que pode levar à perda da identidade cultural dos ayllus do norte de Potosí.

No entanto, o autor argumenta que a cultura nunca é estática e que o processo de aculturação é inevitável. Ao citar o antropólogo Cuche, enfatiza que nenhuma cultura existe em "estado puro", sem influências externas. O contato cultural, seja por meio do colonialismo, seja por meio da globalização, resulta em um processo contínuo de construção, desconstrução e reconstrução cultural. Esse fenômeno é particularmente evidente no Tinku, em que elementos modernos, como camisetas de times de futebol e smartphones, coexistem com práticas ancestrais.

Resistência Cultural em Macha

Apesar das mudanças e da influência externa, a pesquisa r a resistência cultural em Macha, onde o Tinku ainda é praticado de maneira autêntica. A região de Macha é relativamente isolada, sem muitos recursos turísticos, o que ajuda a preservar a integridade do ritual. As estradas precárias e a falta de comodidades dificultam o acesso de turistas, permitindo que o Tinku continue a ser um evento essencialmente comunitário e no qual as tradições são mantidas vivas, elementos de resistência que garantem a continuidade das tradições culturais dos ayllus.

Análise

Para o Professor Baptista, o Tinku é um exemplo claro de como as culturas indígenas bolivianas estão em constante negociação com o mundo moderno, pois, embora o sincretismo e as influências externas sejam inevitáveis, a resistência cultural em regiões como Macha demonstra que ainda há espaço para a preservação das tradições ancestrais.

Em sua forma atual, o Tinku, continua a ser uma expressão poderosa da identidade indígena boliviana, o que espelha a complexa interação entre tradição e modernidade. Quanto ao futuro do Tinku, o pesquisador afirma que esse dependerá de como as comunidades locais continuarão a equilibrar a preservação cultural com a adaptação às novas realidades sociais e tecnológicas.

 

[i] Doutorando em Comunicação, FAAC-UNESP.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).