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Desafios jurídicos e culturais das comunidades tradicionais brasileiras

Membros do Grupo de Estudos em Democracia e Gestão Social, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), discutem os direitos dos povos e comunidades tradicionais no Brasil quanto à relação com o território e os desafios enfrentados para o reconhecimento legal de terras. Também examinam a importância da biodiversidade e o papel das comunidades na preservação ambiental, além de discutir a proteção dos patrimônios materiais e imateriais tradicionais. Com base em legislações nacionais e acordos internacionais, o texto enfatiza a luta das populações tradicionais por justiça, dignidade e sustentabilidade.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 8 abr. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2018, no volume 2 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Laís de Carvalho Pechula, Sérgio Leal Mota e Nelson Russo de Moraes analisam os direitos dos povos e comunidades tradicionais no Brasil, abordando as questões legais, territoriais, culturais e ambientais que envolvem tais populações. Com base em uma leitura crítica da legislação brasileira e internacional, o texto examina as dificuldades enfrentadas pelas comunidades para garantir seus direitos sobre territórios, recursos naturais e conhecimentos ancestrais, oferecendo uma visão detalhada de como esses elementos se interconectam e refletem na luta por justiça e dignidade.

A história dos povos tradicionais no Brasil é intrinsecamente ligada ao território, tanto no sentido físico como simbólico. Desde o início da colonização, foram marginalizados, deslocados e, muitas vezes, invisibilizados pela sociedade nacional, que buscava se modernizar e expandir fronteiras em detrimento das populações indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais. A perspectiva dominante via esses grupos como “atrasados” e “obstáculos” ao desenvolvimento, o que contribuiu para a exclusão deles do processo de construção da nação brasileira.

No entanto, o texto ressalta que os povos tradicionais representam uma parcela significativa da população e ocupam cerca de um quarto do território brasileiro, vivendo em todas as regiões do país. O reconhecimento da sua importância para a preservação ambiental e para a diversidade cultural é relativamente recente, e o Decreto nº 6.040, de 2007, marca um avanço importante nesse sentido.

O decreto institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, reconhecendo formalmente, pela primeira vez, a existência e os direitos desses grupos. De acordo com o decreto, os povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados que se reconhecem como tais e que possuem formas próprias de organização social, utilizando territórios e recursos naturais para a reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica.

O território é descrito pelos autores como sendo mais do que uma questão de posse da terra para as comunidades. Ele é tanto um espaço físico como um componente essencial da identidade cultural, espiritual e social. O território é onde estão enterrados seus ancestrais, onde ocorrem rituais sagrados, e onde se desenrolam as relações simbólicas que dão sentido à sua existência. A noção de território, portanto, vai além das fronteiras geográficas impostas pelo Estado e se estende para o campo das memórias, tradições e saberes que mantêm os povos unidos e conectados com a natureza.

Destaca-se, no entanto, que o reconhecimento jurídico dos direitos territoriais das comunidades tradicionais enfrenta muitos obstáculos. Um dos principais deles é a burocracia e a rigidez do sistema jurídico brasileiro, que, desde a promulgação da Lei de Terras de 1850, exige documentos de posse formal para o reconhecimento de propriedade. Isso coloca os povos tradicionais em uma posição de desvantagem, pois suas ocupações e reivindicações de terra nem sempre são compatíveis com o sistema legal imposto. Além disso, os territórios das comunidades frequentemente se estendem por mais de um município ou estado, o que cria complexidades adicionais no processo de demarcação e reconhecimento legal.

A Constituição Federal de 1988 foi um marco importante na consolidação dos direitos territoriais das comunidades tradicionais, especialmente para indígenas e quilombolas. Os artigos 231 e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias garantem a essas populações o direito às terras tradicionalmente ocupadas e preveem a proteção de suas culturas e modos de vida. No entanto, os pesquisadores sublinham que, apesar dos avanços legais, ainda há uma lacuna significativa entre o que está previsto na legislação e a sua implementação efetiva. Muitos povos tradicionais continuam sem acesso formal a suas terras, o que aumenta o risco de violência, exploração e deslocamento forçado.

Outro aspecto importante da pesquisa é a relação das comunidades tradicionais com a biodiversidade, as quais são detentoras de conhecimentos profundos sobre o manejo sustentável dos recursos naturais e desempenham papel fundamental na preservação do meio ambiente. A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), assinada pelo Brasil durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro em 1992, reconhece a importância da preservação da biodiversidade e estabelece a necessidade de uma repartição justa e equitativa dos benefícios derivados do uso dos recursos naturais. A CDB é um dos principais instrumentos internacionais que visam promover o uso sustentável dos recursos e garantir que as comunidades que detêm o conhecimento sobre esses recursos sejam recompensadas de maneira justa.

Nesse contexto, o Protocolo de Nagoya, aprovado em 2010 durante a décima Conferência das Partes da CDB, surge como um complemento essencial à convenção, estabelecendo normas mais detalhadas sobre o acesso a recursos genéticos e a repartição dos benefícios gerados a partir de seu uso. O protocolo é uma resposta direta às preocupações com a biopirataria e a apropriação indevida de recursos naturais e conhecimentos tradicionais. A implementação do Protocolo de Nagoya no Brasil foi formalizada com a promulgação da Lei nº 13.123/2015, que estabelece as condições para o acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado, além de garantir a proteção dos direitos das comunidades.

A Lei nº 13.123/2015 facilita o acesso às informações e aos materiais genéticos ao desburocratizar o processo de pesquisa, substituindo a autorização formal por um simples cadastro, o que representa um avanço para a pesquisa científica. Ao mesmo tempo, a lei cria mecanismos de proteção para os conhecimentos tradicionais, garantindo que as comunidades que detêm esse saber sejam devidamente compensadas. Além disso, a criação de um fundo nacional para a repartição de benefícios visa promover a conservação da biodiversidade e o uso sustentável dos recursos naturais, ao mesmo tempo em que beneficia as comunidades tradicionais.

A Constituição de 1988 reconhece também a relevância dos bens imateriais, entendidos como aqueles que são portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diversos grupos que compõem a sociedade brasileira. Os artigos 215 e 216 da Constituição estabelecem a defesa da diversidade cultural e protegem as manifestações culturais que contribuem para a formação da identidade nacional. Isso inclui rituais, saberes, práticas e tradições transmitidas de geração em geração.

A preservação do patrimônio imaterial se mostra importante para a continuidade das culturas tradicionais, que muitas vezes se veem ameaçadas pela pressão da modernidade e pela falta de políticas públicas adequadas. A proteção jurídica desses conhecimentos e práticas é uma questão de respeito aos direitos culturais das comunidades tradicionais e de preservação de um patrimônio que é fundamental para a humanidade como um todo. Os saberes tradicionais, especialmente relacionados à biodiversidade e ao manejo sustentável dos recursos naturais, são cada vez mais valorizados como alternativas para enfrentar a crise ambiental global.

Os autores concluem que, apesar dos avanços alcançados no reconhecimento e proteção dos direitos das comunidades tradicionais, ainda há muito a ser feito. As leis e os decretos existentes representam passos importantes na direção certa, mas sua implementação ainda é insuficiente para garantir a plena realização de direitos. A luta por território, cultura e sustentabilidade continua a ser uma batalha diária para muitas comunidades tradicionais no Brasil.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).