NOTÍCIAS

MATOPIBA em foco: a resistência das comunidades tradicionais no Cerrado

Pesquisadores da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA) discutem como o avanço do Plano de Desenvolvimento Agropecuário (PDA) MATOPIBA nos Cerrados brasileiros tem promovido a expansão do agronegócio em detrimento das comunidades tradicionais. A criação de novas fronteiras agrícolas ameaça modos de vida ancestrais e provoca desmatamento massivo. Enquanto o Estado apoia tal territorialização do capital, comunidades como a sertaneja de Forquilha – no município de Benedito Leite, sudeste do estado do Maranhão – resistem, lutando contra a expropriação e a violência, defendendo suas terras, cultura e formas de subsistência diante das pressões do agronegócio.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 16 abr. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2018, no volume 2 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Raoni Fernandes Azerêdo, docente da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA – Campus de Alenquer), e Saulo Barros da Costa, docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA – Campus Pinheiro), escolheram o seguinte título para o capítulo: ‘O risco que corre pau, corre o machado!’: avanço do PDA MATOPIBA e as formas de luta e resistência de entidades, povos e comunidades tradicionais nos cerrados brasileiros.

Com esse título, os autores fazem alusão a um provérbio popular que reflete uma situação de vulnerabilidade e conflito entre forças desiguais, como a madeira (pau) e o machado. No contexto da pesquisa, a metáfora simboliza a relação desigual entre as comunidades tradicionais (representadas pelo “pau”, que são as vítimas da exploração) e o agronegócio (o “machado”, que avança de maneira agressiva e destrutiva sobre os territórios). A expressão sugere que o risco é constante para os que resistem ao poder de forças externas, como o avanço do agronegócio representado pelo PDA MATOPIBA, mas que tal risco não é unívoco, uma vez que existe a resistência por parte das comunidades. Mesmo diante de uma força avassaladora, como o agronegócio, as comunidades tradicionais respondem com resiliência, reafirmando suas identidades, lutando por seus territórios e resistindo à expropriação e às pressões do capital.

____

A sigla MATOPIBA (Figura 1) se refere à nova fronteira agrícola brasileira que avança sobre os estados do Maranhão (MA), Tocantins (TO), Piauí (PI) e Bahia (BA). O PDA MATOPIBA, por sua vez, é uma iniciativa que tem como objetivo fomentar o desenvolvimento econômico em uma vasta região que, devido às condições naturais, tem sido gradualmente transformada em um polo de produção agrícola de commodities, particularmente soja. Este processo de desenvolvimento, contudo, traz consigo implicações complexas, tanto para o meio ambiente como para as populações locais, que veem seus modos de vida ameaçados pela intensificação das atividades do agronegócio.

Figura 1 - Região do MATOPIBA
Fonte: Azerêdo e Costa (2019).

Segundo os autores, o processo de desenvolvimento citado é acolhido pelo Estado brasileiro, o qual é considerado uma entidade ao serviço das elites econômicas, que atua como um “comitê para gerenciar os negócios da burguesia”, formulação que remete a teorias marxistas, especialmente de Lênin e Gramsci. Essa perspectiva ajuda a contextualizar o PDA MATOPIBA como um projeto de classe, ou seja, uma política pública formulada e executada por frações da classe dominante com o objetivo de consolidar estratégias de acumulação de capital. O agronegócio brasileiro, que surge como principal beneficiário desse plano, é descrito como um setor que, mesmo diante de crises, busca novas formas de expandir suas atividades, sendo o Cerrado a última fronteira agrícola a ser conquistada.

Observa-se que a formulação do plano foi baseada em um acordo entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o Grupo de Inteligência Territorial Estratégica (GITE), da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em 2015. A principal premissa do PDA é a criação de políticas públicas que incentivem o desenvolvimento econômico por meio da agropecuária, fornecendo a infraestrutura necessária para o avanço do agronegócio em uma área de 73 milhões de hectares, dos quais 66 milhões estão no bioma Cerrado. O impacto do plano é sentido principalmente pelas populações tradicionais, que habitam as regiões envolvidas há gerações e que agora se veem sob a ameaça constante de expropriação.

O Cerrado (Figura 2) é um dos biomas mais antigos do Brasil, abriga uma diversidade de espécies e um modo de vida tradicional que está profundamente enraizado no metabolismo entre os grupos humanos e o ambiente natural. No entanto, o PDA MATOPIBA promove uma visão completamente diferente dessa região, tratando-a como um espaço a ser mercantilizado e transformado em um motor de produção agroindustrial. Essa transformação, conforme apontado pela pesquisa, segue uma lógica histórica e colonial de exploração da terra, na qual a grande propriedade fundiária e o monocultivo substituem o uso sustentável e comunitário da terra pelas populações tradicionais.

Figura 2 - Abrangência das áreas do cerrado no Brasil
Fonte: Azerêdo e Costa (2019).

Embora o PDA seja o projeto mais recente, há uma conexão histórica entre o agronegócio e o Cerrado, exemplificada pelo Programa Nipo-Brasileiro de Desenvolvimento dos Cerrados (PRODECER), projeto financiado pela Agência Japonesa de Cooperação Internacional (JICA) que visava promover o cultivo de soja e outros produtos agrícolas no bioma. O PRODECER foi implementado nas décadas de 1970 e 1980 e representou um marco na inserção do Cerrado na lógica de financeirização global, transformando a região em um eixo estratégico na produção de commodities agrícolas. Essa transformação, no entanto, não ocorreu sem impactos. O Cerrado, que no início dos anos 1970 cultivava apenas 20 mil toneladas de soja, viu esse número saltar para 29 milhões de toneladas no início dos anos 2000. Tal expansão (Figura 3) agrícola levou à destruição de milhões de hectares de vegetação nativa e continua a crescer em ritmo acelerado, com 52% da produção de soja no Brasil concentrada no bioma.

Figura 3 - Expansão agrícola no Cerrado

Fonte: Azerêdo e Costa (2019).

O avanço do agronegócio no Cerrado, de acordo com os pesquisadores, é parte de um processo maior de acumulação por espoliação, conceito central na obra de David Harvey. Esse processo envolve a apropriação de terras e recursos naturais pelas elites econômicas, muitas vezes às custas de populações vulneráveis, como as comunidades tradicionais. Neste sentido, na visão dos autores, o PDA MATOPIBA é um exemplo claro desse tipo de acumulação, na medida em que promove a territorialização do capital nas áreas mais ricas e férteis do Cerrado, ao mesmo tempo em que expropria as terras ocupadas historicamente pelas comunidades locais. A lógica por trás desse processo é a de que o capital precisa de novos espaços para continuar a acumular riquezas, e o Cerrado, com suas vastas áreas de terras planas e férteis, oferece exatamente esse tipo de oportunidade.

Todavia, as transformações no Cerrado não ocorreram sem resistência pelos afetados pelos projetos de desenvolvimento, as comunidades tradicionais. A comunidade sertaneja de Forquilha, localizada no município de Benedito Leite, no sudeste do Maranhão, é um exemplo emblemático disso. A comunidade existe há mais de 50 anos e viu sua rotina pacífica e seu modo de vida sustentável serem interrompidos pela chegada de fazendeiros interessados em expandir a produção agrícola na região. Assim, a comunidade foi gradualmente pressionada a deixar suas terras devido, inclusive, à intimidação e ao uso de violência dos fazendeiros.

Um exemplo de violência e intimidação foi a contratação, pelos fazendeiros, de jagunços armados para patrulhar a região, ameaçando os moradores e destruindo suas plantações e propriedades. A polícia local, em vez de proteger a comunidade, atuava ao lado dos fazendeiros, ignorando as queixas dos moradores e, em alguns casos, participando ativamente das ameaças. A resistência da comunidade de Forquilha, contudo, foi fortalecida pelo apoio de organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outras entidades que atuam na defesa dos direitos das populações tradicionais. Mesmo diante de ameaças constantes, a comunidade conseguiu obter uma liminar judicial que garante sua permanência nas terras, embora o processo legal ainda estivesse em curso à época da pesquisa.

A expansão do agronegócio na região é também motivo de grandes impactos sobre o meio ambiente e a cultura local. A devastação causada pela plantação de eucalipto na região de Forquilha causou danos irreparáveis, destruindo a vegetação nativa e afetando diretamente o modo de vida dos moradores. O Cerrado, antes uma fonte de alimentos, remédios e outros recursos naturais, foi transformado em um deserto verde de eucaliptos, privando a comunidade de suas fontes tradicionais de sustento. A perda da biodiversidade é acompanhada pela perda de saberes tradicionais, como o conhecimento sobre plantas medicinais e alimentos do Cerrado, que foram transmitidos por gerações, mas agora estão ameaçados de desaparecer.

Para os autores, embora a situação das comunidades tradicionais seja alarmante, as formas de resistência cultural e religiosa são destacadas como elementos fundamentais para a preservação de identidades e para a continuidade da luta tradicional. A festa do Divino Espírito Santo e a umbanda, praticadas pela comunidade de Forquilha, são exemplos de como a cultura e a espiritualidade podem fortalecer os laços comunitários e oferecer uma base para a resistência. O IV Encontrão da Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, realizado em Forquilha em 2016, é descrito como um momento crucial de mobilização, no qual diferentes comunidades se uniram para trocar experiências e fortalecer suas lutas contra o agronegócio.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).