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Etnomatemática e identidade cultural na educação quilombola

Pesquisadores da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) exploram como a etnomatemática pode valorizar os saberes populares nas comunidades quilombolas, promovendo o empoderamento cultural dos estudantes. Discutem os desafios educacionais enfrentados, a tensão entre globalização e identidade local, e defendem uma pedagogia inclusiva que respeite e integre os conhecimentos tradicionais ao currículo acadêmico, fortalecendo a cidadania crítica.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 2 maio 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2020, no volume 5 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Cristiano Gomes de Oliveira e Márcio de Albuquerque Vianna, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), conduzem análise sobre a educação em comunidades quilombolas, destacando a necessidade de integrar os saberes populares ao ambiente escolar e ao currículo acadêmico. Enfatizam que essa integração pode transformar a experiência educativa, levando ao empoderamento dos estudantes e criando um ambiente mais inclusivo, onde a diversidade cultural é reconhecida como fundamental para o processo de ensino-aprendizagem.

A pesquisa destaca dois pontos principais: a valorização dos saberes tradicionais e o empoderamento dos sujeitos, com ênfase nos estudantes quilombolas. Os autores desafiam a visão tradicional de que apenas o conhecimento acadêmico, muitas vezes centrado em um viés ocidental, tem valor no ambiente escolar. Eles defendem que os saberes culturais trazidos pelos alunos devem ser integrados ao currículo, tanto para reconhecer a diversidade, como para promover uma educação mais significativa e relevante.

A sala de aula, nessa perspectiva, é vista como um espaço de intercâmbio de saberes, onde professores e alunos compartilham suas vivências e conhecimentos, que precisam ser respeitados. Entretanto, o cenário educacional brasileiro, especialmente nas escolas que atendem comunidades quilombolas, enfrenta problemas que dificultam a implementação de uma pedagogia inclusiva. Entre esses problemas estão a rigidez curricular, a escassa discussão sobre cultura popular na formação de professores e a tendência de muitos educadores a replicarem o modelo tradicional de ensino que experimentaram.

Nesse contexto, o conceito de etnomatemática surge como uma abordagem inovadora. A etnomatemática reconhece e valoriza as práticas culturais e os saberes de diferentes grupos sociais, propondo uma pedagogia que dialogue com os conhecimentos tradicionais e os insira no ensino formal. Isso permite que os professores promovam um aprendizado mais significativo, ajudando os alunos a reconhecer o valor de suas próprias culturas e identidades, rompendo com a invisibilidade e marginalização dessas comunidades no sistema educacional.

O processo de ensino, segundo os autores, deve ser repensado de forma crítica para superar a hierarquia entre o conhecimento acadêmico e o saber popular. A valorização dos saberes locais não deve ser um simples complemento ao currículo, mas parte essencial do processo educativo. Ao integrar esses saberes, os professores ajudam os alunos a desenvolver um sentimento de pertencimento e empoderamento, mostrando que suas culturas e experiências têm lugar na educação formal.

Os autores destacam ainda o papel do professor como mediador entre os saberes populares e acadêmicos. O docente deve incentivar o diálogo entre tais conhecimentos, criando um ambiente onde os alunos se sintam à vontade para compartilhar suas experiências. Essa abordagem exige uma mudança profunda nas práticas pedagógicas tradicionais, que tendem a priorizar a transmissão de conteúdos desconectados da realidade dos alunos.

Ao valorizar as experiências culturais e os saberes locais, os educadores contribuem para fortalecer a autoestima dos estudantes quilombolas. Esse empoderamento é essencial para que os alunos reconheçam seu potencial como agentes de mudança social. O reconhecimento de suas histórias e tradições tem um impacto significativo na forma como eles se veem no mundo, promovendo uma identidade mais fortalecida.

Muitos estudantes quilombolas, assim como aqueles de outras comunidades tradicionais, frequentemente não encontram significado nos conteúdos escolares, pois os currículos são elaborados de forma descontextualizada, ignorando suas realidades. Isso leva ao desinteresse e à falta de motivação. A etnomatemática propõe uma solução, sugerindo que os conteúdos sejam ensinados de forma que os alunos possam relacioná-los com suas vivências e tradições culturais. Esse processo torna o aprendizado mais envolvente e relevante.

Além disso, a pesquisa aborda os impactos da globalização na educação e na formação das identidades culturais locais. A globalização, que tende a homogeneizar culturas e eliminar diferenças, afeta diretamente as práticas educacionais, muitas vezes guiadas por padrões globais de ensino. Como resultado, práticas culturais locais, como as das comunidades quilombolas, são esquecidas ou marginalizadas. Esse cenário apresenta um desafio duplo: ao mesmo tempo em que as escolas precisam atender às demandas globais, elas têm a responsabilidade de promover o reconhecimento e a preservação das identidades culturais locais.

Diante disso, os autores sublinham que a educação quilombola deve ser um espaço de resistência cultural. A escola precisa ser um local onde os saberes tradicionais possam sobreviver e florescer, sendo reconhecidos como parte fundamental do processo educacional. Ao promover esse tipo de educação, os professores contribuem para a preservação das culturas locais e preparam os alunos para enfrentar os desafios do mundo globalizado de maneira crítica e consciente.

O ensino da matemática é destacado como exemplo de como os saberes populares podem ser integrados ao currículo escolar. Em vez de ensinar a matemática de forma abstrata, a etnomatemática sugere que os professores utilizem exemplos práticos e culturalmente relevantes, como jogos tradicionais, práticas artesanais ou o uso da matemática em atividades diárias, como a pesca e a agricultura. Essa abordagem não só torna o aprendizado mais interessante e relevante, mas também mostra aos alunos que a matemática é uma ferramenta aplicável à sua realidade.

A educação nas comunidades quilombolas deve ir além da simples transmissão de conteúdos acadêmicos. Ela deve preparar os alunos para serem cidadãos críticos e engajados em suas comunidades e na sociedade em geral. Isso envolve o desenvolvimento de habilidades acadêmicas e a formação de uma consciência crítica sobre questões sociais, políticas e econômicas. A etnomatemática, ao promover o diálogo entre saberes populares e acadêmicos, contribui para a formação de cidadãos mais conscientes.

Na visão dos autores, a educação é um ato político. Ela não deve ser neutra, mas comprometida com a transformação social. Os professores precisam adotar um papel ativo na luta por uma educação mais justa e inclusiva, que valorize a diversidade cultural e promova o empoderamento dos sujeitos. Isso implica reconhecer a importância dos saberes populares e questionar as estruturas de poder que perpetuam a marginalização de certos grupos no sistema educacional.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).