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O mundo social na educação quilombola

Trabalho de campo realizado por pesquisadoras da UEPA e UNAMA no quilombo Monte Alegre, na cidade de Acará, Pará, aponta os desafios enfrentados por professoras na educação escolar quilombola.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 9 fev. 2024

As pesquisadoras Dra. Ana D’Arc Azevedo[ii] (UEPA e UNAMA), a estudante do curso de Pedagogia Cristiane Souza[iii] (UEPA), e a Dra. Maria Betânia Arroyo (UNAMA) realizaram uma pesquisa junto às professoras da escola na comunidade quilombola Monte Alegre, situada no município de Acará, no estado do Pará, em 2021.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2022, no volume 11 da série Estudos sobre Povos Originários e Comunidades Tradicionais. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Azevedo, Souza e Arroyo buscaram compreender como a sociedade e a cultura do Quilombo Monte Alegre estão refletidas nas práticas educativas das professoras entrevistadas. Para isso, identificaram os conteúdos, as atividades e os problemas enfrentados pelas docentes em trazer a realidade dos alunos para dentro da sala de aula.

Segundo as cientistas, compreender a importância de abordar questões sociais e culturais quilombolas dentro da sala de aula exige, em primeiro lugar, entender o que é um quilombo, e em segundo lugar, por que a educação escolar quilombola se diferencia da educação escolar convencional.

Para definir o termo quilombola, as investigadoras recorreram ao Artigo 2º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. O termo na lei se refere aos grupos étnico-raciais de ancestralidade negra que se consideram quilombolas e cuja trajetória histórica está relacionada a um território específico, onde resistiram à opressão histórica.

Sobre a educação escolar quilombola, as autoras evidenciam que o currículo escolar deve conter a história oficial do continente africano e das relações étnico-raciais de forma não estereotipada, não preconceituosa e não discriminatória, direito assegurado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 10.639/2000) e pelas Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004).

No entanto, os resultados da pesquisa apontam que tais direitos ainda não têm sido integralmente atingidos na educação escolar do Quilombo Monte Alegre. Faltam materiais didáticos de alfabetização pautados numa educação étnico-racial, o que se torna ainda mais desafiador em classes multisseriadas e com estrutura precária, como a da escola estudada.

Em entrevista à RedeCT, Azevedo explica que as classes multisseriadas possuem alunos de diversos níveis numa sala de aula. Esses alunos são atendidos por um único professor. Embora aponte que essa situação não é ideal, a pesquisadora afirma que é comum nas escolas rurais.

Diante desta situação, Azevedo destaca a necessidade da criação de estratégias de formação para os professores no cenário de educação integrada das salas multisseriadas, a fim de minimizar os efeitos dessa configuração nas escolas. Também chama atenção para a forte cobrança exercida sobre os professores pelo sucesso dos alunos nessas condições. Porém, assinala que não há uma contrapartida correspondente às cobranças, já que, muitas vezes, os professores se deparam com a infraestrutura inadequada nas escolas, a falta tanto de treinamento metodológico para a situação de sala multisseriada como de um salário justo para o exercício da função.

O relato da pesquisa mostra que a escola em Monte Alegre é uma escola nucleada, referenciada por uma escola polo não quilombola, que atende a diversas outras escolas não quilombolas. A partir da escola polo, projetos específicos são enviados para execução nas escolas nucleadas, os quais não fazem parte do contexto sociocultural dos alunos quilombolas.

Apesar dessas limitações, as professoras têm empregado recursos para trazer a realidade sociocultural dos alunos quilombolas para dentro da sala de aula. Relatos obtidos na pesquisa mencionam o ensino do cálculo matemático utilizando temas comuns aos alunos, como quantidade de litros de açaí, quilos de farinha de mandioca e frutos da localidade. Ao falaram de preservação da natureza, mencionam os igarapés, comuns na paisagem local, e o impacto de sua não preservação. Em um projeto sobre história, os alunos produziram uma exposição com fotos e cartazes em que contavam sobre as memórias dos integrantes mais idosos da comunidade.

Outras atividades realizadas pelas professoras incluem a confecção de bonecas de pano e corda de sisal; brinquedos e brincadeiras africanas; oficinas de tranças nagô com os pais e os alunos; história das tranças e seu real significado como uma forma de resistência; oficinas para fazer colares, pulseiras, brincos, entre outros adereços, com sementes arrecadadas pelos alunos; confecção de instrumentos musicais utilizando materiais recicláveis e materiais naturais do local; confecção de máscaras africanas; pintura temática quilombola feita pelos próprios alunos; músicas, poesias e história dos povos africanos, entre outras atividades.

Contudo, em sua maioria, as atividades de caráter étnico-racial elaboradas pelas professoras estão concentradas em torno do dia da Consciência Negra, 20 de novembro.

Embora as professoras se empenhem muito em suprir as lacunas deixadas pela inadequação da política pública de educação quilombola no local, as autoras concluem que há a necessidade da formação de um Projeto Político Pedagógico (PPP) para a escola de Monte Alegre, o qual possa ser planejado por todos e todas que vivenciam o ambiente escolar e no qual esteja inclusa a vivência da comunidade.

A Dra. Ana D’Arc esclarece que, para a finalidade de criar um PPP, o conselho escolar, cuja atribuição mais comum é a gestão dos recursos escolares, pode desempenhar papel importante nos rumos pedagógicos da escola. Esta possibilidade se dá pelo conselho ser um órgão colegiado. Assim, se implementada a metodologia participante e democrática para a consecução do PPP, o conselho servirá como espaço para a coleta de informações sobre os processos necessários à elaboração do PPP, para a escuta das partes interessadas, para as deliberações conjuntas e para o posterior condensamento disso num documento formal.

Segundo a entrevistada, apesar de trabalhoso, este processo é fundamental para todas as escolas quilombolas, devido à diferenciação sociocultural do grupo atendido. Azevedo relata que em secretarias municipais de educação que criam coordenações de relações étnico-raciais, a autonomia da escola é promovida e facilitada na busca de uma educação socioculturalmente mais alinhada com o contexto das comunidades a que atende.

A comunidade de Monte Alegre tem passado por um período de aceitação de sua história, seus traços, e suas características físicas, tornando ainda mais clara a necessidade de uma formação continuada sobre a educação quilombola para as professoras, hoje inexistente. As ações mencionadas poderiam contribuir para a inclusão formal da questão sociocultural quilombola no currículo escolar, assim como facilitar o processo educativo por partes das professoras, que teriam o PPP como direcionador no planejamento e execução das aulas e projetos na escola.

De acordo com a Dra. Ana D’Arc, a inserção do mundo social quilombola no PPP e no currículo escolar significa a realização de um diálogo desses instrumentos pedagógicos com as relações sociais reais no quilombo. A autora enfatiza que tal diálogo tem como finalidade prover oportunidades curriculares para que os alunos adquiram consciência crítica, ou seja, saibam argumentar, escrever e contrapor ideias a respeito das heranças históricas de invisibilidades e vulnerabilidades impostas aos povos de matriz africana. Além disso, poderão compreender que o quilombo não é mais um lugar de fuga, mas de resistência, luta, força e potência contra invasões, grileiros, não reconhecimento de terras, entre outras violências.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

[ii] Ana D’Arc é líder do Grupo de Pesquisa, Saberes e Práticas Educativas de Populações Quilombolas (Eduq), na UEPA, e do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Diversidade e Inclusão (GEPID), na UNAMA. A pesquisadora é amazônida-marajoara, nascida em Alenquer (PA).

[iii] Cristiane é quilombola e moradora do Quilombo Monte Alegre, em Acará, Pará, certificado pela Fundação Cultural Palmares por meio da Portaria nº 67, de 8 de abril de 2019 (Diário Oficial da União –– Seção 1, nº 89, 10 de maio, 2019). A terra quilombola não é demarcada e não está em processos de demarcação, segundo informações do Instituto de Reforma Agrária (Incra).