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Quebradeiras de coco babaçu: resistência feminina no campo

Pesquisadores registram a história e a cultura das trabalhadoras extrativistas do coco babaçu no assentamento Sete Barracas, localizado no município de São Miguel do Tocantins, estado do Tocantins.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 14 fev. 2024

Os pesquisadores Me. Juscelino Santos[ii] (Secretaria Municipal de Educação de Araguaína, Tocantins) e Dra. Rejane Medeiros (Universidade Federal do Norte do Tocantins-UFNT) realizaram entrevistas junto a sete quebradeiras de coco babaçu do assentamento Sete Barracas, município de São Miguel do Tocantins, localizado na microrregião do Bico do Papagaio, estado do Tocantins.

Santos e Almeida buscaram compreender o modo de vida das quebradeiras de coco babaçu que residem na região de São Miguel do Tocantins desde 1980. A partir da narrativa das trabalhadoras extrativistas, delinearam as práticas culturais, identidade e relacionamento das mulheres com a palmeira babaçu.

Santos assinala que, com a realização desta pesquisa, registrou as vozes silenciadas das extrativistas de coco babaçu na história e na geografia do norte do Tocantins. Segundo o autor, isso é importante porque as comunidades tradicionais da região e suas lutas não constam na história oficial.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 8 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

São Miguel do Tocantins faz parte do Bico do Papagaio (Mapa 1), uma microrregião política composta por 25 municípios, localizada no extremo norte do Tocantins. A microrregião recebe este nome devido ao formato geográfico alongado e estreito, semelhante ao bico de um papagaio. Faz divisa com o Maranhão a leste e Pará a oeste.

Mapa 1: Microrregião política do Bico do Papagaio, Tocantins
Fonte: Souza (2023).

A formação do município de São Miguel do Tocantins está ligada ao garimpo de diamantes, com registros de sua colonização a partir da década de 1940. O garimpo atraiu muitos retirantes do Piauí e Maranhão para a região na década de 1950. Em 1952, essas pessoas formaram um povoado chamado, inicialmente, de Samambaia. Posteriormente, o povoado foi renomeado para São Miguel, devido à imagem de São Miguel Arcanjo trazida por uma das primeiras famílias a ocupar o local. Mais tarde, o povoado se tornou um distrito do município de Itaguatins até ser elevado à categoria de município em 1992.

Segundo Santos, o povoado Sete Barracas foi formado por migrantes maranhenses, em meados do século XX, os quais procuravam terras para se estabelecer no norte do Tocantins. A procura de terras ocorria devido ao forte processo de grilagem em terras maranhenses. Os retirantes construíram sete casas de palha –– razão do nome Sete Barracas –– em terras devolutas. No entanto, a partir de 1972, um fazendeiro passou a reclamar a terra do povoado para si, com a anuência do juiz de Itaguatins. Os posseiros foram vítimas de diversas violências, chegando a ser expulsos de suas terras e terem suas moradias destruídas.

Contudo, a luta organizada da comunidade levou à criação do sindicato de trabalhadores rurais e à resistência às violências impetradas por policiais, jagunços e instituições públicas. O conhecimento dos direitos dos posseiros sobre a terra e das formas de pleiteá-los recebia grande contribuição da Comissão Pastoral da Terra (CPT), vinculada a igreja católica. Um expoente da luta pelos direitos dos campesinos na CPT foi o Padre Josimo Morais Tavares, assassinado a mando de um latifundiário em 1986, mesmo ano em que Sete Barracas conquistou a regularização de seu assentamento.

A região do Bico do Papagaio apresenta a maior concentração de florestas de babaçu no Tocantins, sendo o local onde as quebradeiras desenvolvem seu modo de vida e cultura. Em entrevista, Santos esclarece que o modo de vida e cultura são faces de uma mesma moeda. Logo, fazem parte de uma construção social coletiva, do grupo e para o grupo; expressam aquilo que está na memória coletiva e que não precisa ser falado; é a partilha dos mesmos ideais; é a maneira como o grupo experimenta o mundo.

Como o babaçu (Figura 1a e 1b) ocupa um espaço importante no modo de vida das quebradeiras e de suas famílias, as extrativistas aproveitam as partes da palmeira como um todo:

  • O talo das folhas é utilizado na estruturação das casas cujas paredes são preenchidas com barro (Figura 1c);
  • As palhas das palmeiras são utilizadas para cobrir tais casas e fazer cofos (Figura 1d);
  • As cascas do babaçu são utilizadas para fazer carvão (Figura 2a);
  • As amêndoas (Figura 2b) são utilizadas para fazer azeite (Figura 2c), utilizado na comida e no preparo de sabão, e o leite do babaçu, utilizado no preparo de pratos tradicionais;

O gongo, larva de besouro que se alimenta da amêndoa do coco babaçu (Figura 2b), é também extraído e consumido.

Figura 1 - (a) Palmeiras de babaçu no assentamento Sete Barracas, município de São Miguel do Tocantins, TO; (b) Cacho de cocos da palmeira babaçu; (c) Casa coberta com palha da palmeira babaçu;(d) Cofo feito com palha da palmeira babaçu

Fonte: Santos (2021).

Figura 2 – (a) Carvão feito com a casca do coco babaçu; (b) Amêndoa do coco babaçu; (c) Azeite produzido a partir das amêndoas do coco babaçu; (d): Quebradeira de coco utilizando machado e macete para quebrar coco

Fonte: Santos (2021).

Sabão, azeite e carvão são comumente vendidos pelas extrativistas (Figura 2d) nas feiras locais, além de serem utilizados domesticamente. Portanto, possuem relevância na segurança econômica e na segurança alimentar e nutricional. A principal função do trabalho com o babaçu é o sustento dos filhos. Além disso, os artefatos e produtos produzidos a partir da palmeira babaçu possuem relevância intrínseca, pois são símbolos de uma cultura e portadores de um conhecimento tradicional produzido pelas comunidades a que se referem.

As mulheres que realizam os trabalhos extrativos do coco são, em sua maioria, negras, com ancestralidade indígena e com idade superior a 40 anos. Para elas, o lugar onde desenvolvem suas vidas é o lugar onde constroem sua territorialidade.

A territorialidade da quebradeira de coco babaçu está fortemente conectada à palmeira babaçu, por isso, a palmeira é importante na formação da identidade individual e do grupo, na maneira como as extrativistas se comunicam entre si, no sentimento de pertencimento à comunidade e na resistência aos conflitos e violências históricos impostos sobre elas por diversos atores.

Quando há a proibição da entrada das trabalhadoras para realizar a coleta dos cocos nas fazendas privadas/privatizadas[i] que abrigam babaçuais, os donos de terras impedem a conservação e reprodução tanto da cultura como do modo de vida que são próprios àquelas mulheres.

Sendo o território físico um elemento de sustentação da vida física e a territorialidade um elemento de ligação afetivo-emocional relacionado à identidade, o controle físico ou dominação dos babaçuais pelos fazendeiros resulta no fortalecimento de desigualdades infligidas à classe trabalhadora rural extrativista do babaçu. Santos afirma que o direito ao território é uma questão de vida ou morte para as quebradeiras, uma vez que, devido à situação de vulnerabilidade social em que vivem, não poderem trabalhar com o babaçu cria insegurança econômica, alimentar e nutricional.

A continuidade desta classe de trabalhadoras é possibilitada pela existência do babaçu e pela possibilidade de explorá-lo. Além disso, é possibilitada pela transmissão intergeracional dos conhecimentos deste trabalho pelas matriarcas aos filhos, que acompanham suas mães na coleta do coco. Desde jovens, aprendem que o coco babaçu não é apenas uma fonte de renda, mas uma atividade enraizada na tradição e cultura.

Um papel metaforicamente maternal é também exercido pela palmeira do babaçu, a quem as trabalhadoras extrativistas chamam de árvore-mãe, como evidenciado pelo trecho a seguir:

[...] se não fosse o coco babaçu eu não tinha criado nove filho. Eu quebrava coco todo dia pra comprar as coisa pra dentro de casa, que tanto fazia tá inverno ou verão, eu tinha de ir, eu sinto a palmeira, igualmente como uma pessoa, uma vida, quando eu vejo uma palmeira derrubada eu fico triste, que ali tá derrubando uma mãe, que as pessoas derrubam as bichinhas não sei para que, porque ali você quebra o coco, você faz o carvão, você tira o azeite, você faz o sabão, de tudo do coco você se aproveita. O olho de paia, você faz o cofo pra levar pro coco, o pau da palmeira você bota no canteiro, tudo do coco você se aproveita. Que a pessoa quer derrubar um pé de coco é um criminoso, que ali é igualmente uma mãe pra quem não tem dinheiro, pra quem é pobre, eu fico muito triste quando eu vejo isso (Quebradeira de Coco Maria Laurindo dos Santos, São Miguel do Tocantins, 27 maio 2021) (Santos, 2021).

Por fim, o trabalho extrativo do coco estimula a conservação da natureza, dado que respeita fundamentalmente a dependência da trabalhadora do babaçu ao meio ambiente equilibrado que, por sua vez, possibilita à extrativista a reprodução física e cultural.

 

Nota: Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA, 1999), a grilagem se refere à “[...] toda a ação ilegal que objetiva a transferência de terras públicas para o patrimônio de terceiros [...] que tem seu início em escritórios e se consolida no campo mediante a imissão na posse de terras”.

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

[ii] Juscelino Santos é nativo de São Miguel do Tocantins, filho de uma quebradeira de coco babaçu.