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Racismo e sexismo contra a mulher negra: violência na música como artefato cultural

Representantes quilombolas e pesquisadores membros da RedeCT realizam diálogo crítico sobre a violência contra as mulheres negras e quilombolas contida em letras de músicas populares brasileiras.

Por Laurenita Gualberto Pereira Alves[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Dianópolis-TO | 27 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2019, no volume 3 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

O estudo examina como as letras musicais perpetuam e reforçam discriminações contra mulheres negras como artefato cultural, destacando a necessidade urgente de um controle social que contraponha essas as narrativas prejudiciais as quais podem enfocar o racismo e o sexismo.

No Brasil, país de vasta riqueza cultural, ainda são observadas posturas preconceituosas e sexistas. As canções, muitas vezes aceitas com naturalidade pelo público, carregam narrativas que esse desconhece, mas as quais fortalecem a discriminação. Nessas narrativas há a presença de conteúdos racistas, depreciativos e ofensivos às mulheres negras, desumanizando-as e objetificando-as. A pesquisa destaca que essa aceitação não é apenas uma falha moral, mas também uma falta de conscientização sobre os efeitos nocivos de tais representações. Ao citar Gonzalez (1982), os autores enfatizam que ser mulher e negra no Brasil significa enfrentar uma tripla discriminação, a que é refletida e perpetuada pela música.

Interseccionalidade de racismo e sexismo

O conceito de interseccionalidade, amplamente discutido por teóricas como Kimberlé Crenshaw, é central para entender as múltiplas camadas de opressão enfrentadas por mulheres negras. No Brasil, o racismo e o sexismo não atuam somente de forma isolada mas se sobrepõem, criando experiências únicas de marginalização. Racismo e sexismo são, portanto, entrecruzados, articulados e interseccionados, reforçando os preconceitos estruturais e fortalecendo as desigualdades sociais. Tais formas de discriminação são normatizadas a ponto de se tornarem quase invisíveis, porém, ainda profundamente prejudiciais.

A música como instrumento de violência contra mulher negra e quilombola

Historicamente, no quilombo, as letras dos descantos, rodas e catiras, enquanto músicas tradicionais feitas pelos catireiros de raiz, numa construção com a mulher, sempre as trouxeram muita sensibilidade, respeito e reverência ao feminino. No entanto, os ritmos e letras têm se distanciado das características à medida que os instrumentos midiáticos chegam às comunidades, ocorrendo mudanças significativas, ao ponto da depreciação da imagem das mulheres quilombolas estar em evidência, ao serem lembradas por comparações, pela condição física, emocional, de poder ou não, quase sempre indesejada por elas.

As novas letras e ritmos desvalorizam as mulheres quilombolas reproduzindo alguns estereótipos negativos como:

  • “Cabelo duro”: expressão utilizada de forma depreciativa para descrever os cabelos crespos ou afro, associando-os a algo indesejado ou inadequado, reforçando padrões estéticos eurocêntricos;
  • “Bombril”: outra expressão pejorativa referente aos cabelos crespos, comparando-os à palha de aço, o que desumaniza e ridiculariza a característica natural dos cabelos de muitas mulheres negras;
  • Referências à cor preta como algo negativo ou sujo: algumas letras associam a cor da pele negra a aspectos negativos, reforçando preconceitos raciais e inferiorizando a identidade negra;
  • Termos que objetificam e hipersexualizam o corpo da mulher negra: palavras e expressões que reduzem as mulheres negras a objetos sexuais, enfatizando estereótipos de hipersexualização que têm raízes históricas desde o período colonial e escravocrata;
  • Estereótipos de comportamentos agressivos ou descontrolados: utilização de palavras que associam mulheres negras a comportamentos como “barraqueira”, “maluca” ou “doida”, desqualificando sua postura e credibilidade social;
  • Expressões que remetem à domesticação ou subserviência: termos que colocam a mulher negra em posições de servidão ou submissão, reforçando estruturas patriarcais e racistas.

Assim, sentimentos têm sido provocados, e, diante da discriminação racial, especialmente na forma do racismo institucional, toda a população negra e quilombola é atingida. Conscientes ou não, as atitudes racistas acabam por gerar epistemologias coletivas, como expresso pelo teórico Crochík:

“Os preconceitos que subjazem o imaginário social expressam, mesmo inconscientemente, o desejo de dominação de uns sobre os outros” (Crochík, 1997).

É uma necessidade social urgente enfrentar o racismo e o sexismo, mas isso deve ser feito sem criminalizar o meio, o canal ou a música, que precisam ser preservados como mecanismos fundamentais de reprodução social e cultural. Embora a legislação antirracista reconheça o racismo como crime, a aplicação das leis ainda é insuficiente, pois falta uma compreensão clara da necessidade de justiça racial.

Controle social como instrumento de defesa

Ao abordar o controle social como um instrumento de contraposição ao racismo e ao sexismo, é importante refletir sobre a representação das mulheres negras e o fortalecimento necessário para enfrentar as diversas formas de violência interseccionadas que as ameaçam.

Em se tratando de estereótipos sobre mulheres negras, a música surge como uma prática que frequentemente inferioriza e ridiculariza suas imagens. Neste contexto, o controle social se destaca como uma ferramenta essencial para combater o racismo e o sexismo.

O controle social é apresentado como uma ferramenta essencial para combater o racismo e o sexismo nas músicas. Este conceito, que ganhou força no Brasil a partir da década de 1980, envolve a participação ativa da sociedade civil na fiscalização e monitoramento das ações do Estado e das próprias práticas sociais. O estudo sugere que, para combater efetivamente a violência cultural disseminada pela música, é necessário um esforço coletivo para regular e criticar essas expressões artísticas, sem criminalizar a arte em si, mas garantindo que ela não perpetue injustiças.

O controle social busca a sustentação de estrutura social mínima que garanta uma sociedade mais respeitosa, estruturada sobre princípios não discriminatórios, e que a música, outrora instrumento de manutenção da tradição cultural ancestral, possa ser utilizada para o enquadramento de pensamentos racistas e sexistas contra minorias, dentre elas, as mulheres.

O desafio posto é que toda(o) cidadã(o) construa diálogos e ações estratégicas de controle social, que possam intervir contra manifestações da epistemologia do racismo velado, coibindo eventuais tendências contemporâneas com novas formas de reações. A partir da vigília ancestral de corresponsabilidade educativa, que tem mantido a sustância das relações e culturas na vida comunitária dos quilombos e na sociedade em geral.

 

 

[i] Doutoranda em Ciências do Ambiente - PPCiamb/UFT. Mestre em Educação - PPGE/UFT. Professora do Estado do Tocantins (SEDUC/TO). Membra da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Comunidades Tradicionais (RedeCT). Membro da Comunidade de Remanescente Quilombola de Lajeado (TO). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).