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Os saberes e fazeres tradicionais nas ondas da Rádio Rural de Tefé: as vivências de um comunicador da etnia kambeba

Pesquisadoras da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) apresentam a trajetória de Ronildo Carvalho, comunicador indígena da etnia Kambeba, e seu uso das mídias para promover a cultura e identidade indígena no Amazonas.

Por Ana D’Arc Martins de Azevedo[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT em Belém do Pará | 27 ago. 2024.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2023, no volume 12 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Neste capítulo, os pesquisadores Betânia Matta, Patricia de Oliveira, Welner Campelo e Joseane Reinheimer abordam a trajetória de Ronildo Carvalho, um comunicador e artista indígena da etnia Kambeba, que atua na região do Médio Solimões, no Amazonas.

Partindo do objetivo de entender como as múltiplas interfaces da comunicação, como escrita, rádio, audiovisual e multimídia, se relacionam com o processo de autorreconhecimento indígena de Ronildo, a pesquisa destaca a importância da comunicação como uma ferramenta estratégica na afirmação da identidade indígena e na promoção da diversidade cultural.

Segundo os pesquisadores, Ronildo se destaca por utilizar sua posição na Rádio Educação Rural de Tefé para romper o silenciamento histórico imposto aos povos indígenas, valorizando as tradições culturais através de uma abordagem multimídia que atinge tanto as áreas urbanas quanto as comunidades ribeirinhas.

A pesquisa enfatiza que a democratização da ciência e da comunicação passa pelo respeito à pluralidade de saberes, principalmente os originários das comunidades tradicionais, que foram historicamente invisibilizados.

A atuação de Ronildo contraria o silenciamento histórico imposto aos povos tradicionais, oferecendo aos seus ouvintes uma comunicação fundamentada na diversidade cultural e reafirmando sua conexão com os povos originários. Sua produção possui um relevante cunho social, ao trazer à tona as vivências e saberes dessas comunidades.

Para este estudo, os autores enfatizam que a oralidade desempenha um papel central na preservação dos registros culturais dos povos tradicionais, sendo fundamental para a continuidade dos saberes e fazeres das diversas etnias indígenas no Brasil. Com o reconhecimento da importância da oralidade, o texto adota o método da história oral como abordagem para compreender os desafios profissionais e pessoais enfrentados pelo entrevistado em seu cotidiano como comunicador indígena.

Um pouco da história de Ronildo


Ronildo Carvalho (Figura 1) nasceu em Fonte Boa, município localizado no Médio Rio Solimões, Amazonas. Em 1978, após a separação dos pais, mudou-se para Tefé (AM) com sua mãe. Desde jovem, enfrentou dificuldades financeiras e começou a trabalhar cedo, mas sempre valorizou a educação. Aos 17 anos, encontrou sua primeira conexão com a música ao participar de uma congregação religiosa, o que o levou a cantar em corais e se apresentar em eventos locais.

Figura 1 - Ronildo Carvalho na transmissão do Balanço Cultural

Fonte: Prefeitura Municipal de Tefé (AM).

 

Em sua narrativa, Ronildo atribui ao seu talento como cantor e compositor a abertura de portas para que ele se tornasse intérprete da Banda Eldorado, na qual início à trajetória artística.

No ano de 1987, Ronildo ingressou como estagiário na Rádio Educação Rural de Tefé, onde sua paixão pela comunicação começou a se consolidar. Em 1988, passou a apresentar seus próprios programas, começando sua carreira como comunicador.

O programa "Balanço Cultural", criado pelo radialista, promove a cultura regional e as tradições indígenas, reforçando o valor da identidade cultural amazônica e Kambeba e tem grande destaque em sua carreira. Seu trabalho não só fortaleceu a cultura local, mas também o ajudou a se reconectar com suas raízes indígena.

Inclusão social e diversidade cultural indígena

Os pesquisadores ressaltam que, como comunicador e artista indígena, Ronildo Carvalho desempenhou papel crucial na promoção da inclusão social e da diversidade cultural através de sua atuação.

Por meio da rádio, o indígena conseguiu dar voz às questões e tradições dos povos indígenas, especialmente da etnia Kambeba, promovendo o diálogo intercultural e a resistência contra a invisibilidade histórica dessas populações.

O caso do radialista ilustra a importância das rádios comunitárias no Amazonas, especialmente em áreas remotas. Nelas, a rádio funciona como ferramenta de integração cultural e social. Ronildo, com seu compromisso de manter vivas as tradições Kambeba, torna-se uma figura chave na preservação e valorização da cultura indígena na região do Médio Solimões.

A atividade do comunicador se consolidou como uma referência ao abrir espaços para debates que promovem a cultura dos povos originários. A difusão de histórias culturais na rádio se organiza em torno de uma perspectiva multicultural, em que são incentivados o diálogo e proporcionada a visibilidade à cultura dos povos tradicionais.

Por fim, o capítulo sublinha a importância de aprofundar os estudos sobre os efeitos das novas tecnologias, como a digitalização das rádios, no fortalecimento das identidades e culturas indígenas, especialmente na região amazônica.

 

[i] Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), Professora Adjunta da Universidade do Estado do Pará (UEPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA), Professora Titular do Programa de Pós-Graduação Comunicação, Linguagens e Culturas – PPGCLC e do Programa de Pós Graduação no Mestrado Profissional em Gestão de Conhecimentos para o Desenvolvimento Socioambiental - PPGC na Universidade da Amazônia – UNAMA, E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0257982352792085, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4240-9579.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Relações étnico-raciais e educação antirracista nas escolas brasileiras

Pesquisadoras da Universidade da Amazônia (UNAMA) discutem relações étnico-raciais na perspectiva de uma educação antirracista em contextos escolares. O estudo aborda como o racismo estrutural está enraizado nas instituições educacionais, perpetuando desigualdades históricas que remontam ao período escravista.

Por Ana D’Arc Martins de Azevedo[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT em Belém do Pará | 27 ago. 2024.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2023, no volume 12 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

O estudo foi realizado em 2022 como parte de uma pesquisa de graduação da pedagoga Erika Castro, que investigou as interfaces teóricas entre as relações étnico-raciais e a educação antirracista nas escolas brasileiras. Também contribuíram com a pesquisa Ana D’Arc Azevedo, Maria Arroyo e Cacilene Tavares.

Com a questão central "quais são as interfaces teóricas entre relações étnico-raciais e a educação antirracista?", a pesquisa estabeleceu como objetivo geral identificar tais interfaces. Para isso, realizou a descrição do contexto histórico das relações étnico-raciais na educação brasileira, a compreensão do papel da escola no combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação racial, e a análise da necessidade de uma formação continuada para promover uma educação antirracista. A metodologia adotada foi a bibliográfica.

A pesquisa destaca que a história das relações étnico-raciais no Brasil está intrinsecamente ligada ao processo de escravização de africanos. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, e as legislações abolicionistas, como a Lei Áurea, não garantiram direitos aos negros libertos, perpetuando a marginalização dessa população, herança histórica que ainda se reflete nas desigualdades estruturais do campo educacional.

Em décadas recentes, com a inclusão obrigatória do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no currículo da Educação Básica, promovida pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, houve uma importante ação na desconstrução de preconceitos e no combate ao racismo nas escolas. Essas leis ressaltam a relevância histórica e cultural das populações negras e indígenas, contribuindo para o fortalecimento de uma identidade étnico-racial positiva.

As pesquisadores salientam que ao compreender a escola como instituição social, pode-se perceber que essa desempenha um papel fundamental na reprodução ou desconstrução de práticas racistas. No Brasil, o racismo estrutural muitas vezes se manifesta nas práticas educacionais, reforçando a hegemonia cultural eurocêntrica. Para combater isso, é necessário que a escola promova uma educação antirracista que valorize a diversidade cultural e combata o preconceito racial em todas as suas formas.

Uma das alternativas evidenciadas pela pesquisa para tal situação é o reforço do letramento racial, essencial para a educação antirracista. Sem ele, práticas racistas permanecem enraizadas no cotidiano escolar, perpetuando a discriminação e a exclusão. O letramento racial envolve a desconstrução de pensamentos e ações preconceituosas, preparando tanto professores como alunos para uma convivência mais respeitosa e inclusiva.

Além disso, a formação continuada dos educadores em torno de uma educação antirracista é mencionada como vital, pois muitos professores ainda não têm preparo suficiente para lidar com a diversidade racial em sala de aula, e isso reflete a necessidade de uma maior ênfase na formação docente voltada para a temática étnico-racial.

Os resultados da pesquisa mostram que o racismo ainda persiste nas escolas, mas destacam o papel crucial dos professores na adoção de práticas antirracistas. Sem letramento racial, a educação antirracista torna-se inviável, sendo essencial que tanto educadores quanto alunos aprendam a valorizar as diferenças para criar um ambiente escolar mais inclusivo e respeitoso.

 

[i] Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), Professora Adjunta da Universidade do Estado do Pará (UEPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA), Professora Titular do Programa de Pós-Graduação Comunicação, Linguagens e Culturas – PPGCLC e do Programa de Pós Graduação no Mestrado Profissional em Gestão de Conhecimentos para o Desenvolvimento Socioambiental - PPGC na Universidade da Amazônia – UNAMA, E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0257982352792085, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4240-9579.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Quebradeiras de coco babaçu: resistência feminina no campo

Pesquisadores registram a história e a cultura das trabalhadoras extrativistas do coco babaçu no assentamento Sete Barracas, localizado no município de São Miguel do Tocantins, estado do Tocantins.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 14 fev. 2024

Os pesquisadores Me. Juscelino Santos[ii] (Secretaria Municipal de Educação de Araguaína, Tocantins) e Dra. Rejane Medeiros (Universidade Federal do Norte do Tocantins-UFNT) realizaram entrevistas junto a sete quebradeiras de coco babaçu do assentamento Sete Barracas, município de São Miguel do Tocantins, localizado na microrregião do Bico do Papagaio, estado do Tocantins.

Santos e Almeida buscaram compreender o modo de vida das quebradeiras de coco babaçu que residem na região de São Miguel do Tocantins desde 1980. A partir da narrativa das trabalhadoras extrativistas, delinearam as práticas culturais, identidade e relacionamento das mulheres com a palmeira babaçu.

Santos assinala que, com a realização desta pesquisa, registrou as vozes silenciadas das extrativistas de coco babaçu na história e na geografia do norte do Tocantins. Segundo o autor, isso é importante porque as comunidades tradicionais da região e suas lutas não constam na história oficial.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 8 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

São Miguel do Tocantins faz parte do Bico do Papagaio (Mapa 1), uma microrregião política composta por 25 municípios, localizada no extremo norte do Tocantins. A microrregião recebe este nome devido ao formato geográfico alongado e estreito, semelhante ao bico de um papagaio. Faz divisa com o Maranhão a leste e Pará a oeste.

Mapa 1: Microrregião política do Bico do Papagaio, Tocantins
Fonte: Souza (2023).

A formação do município de São Miguel do Tocantins está ligada ao garimpo de diamantes, com registros de sua colonização a partir da década de 1940. O garimpo atraiu muitos retirantes do Piauí e Maranhão para a região na década de 1950. Em 1952, essas pessoas formaram um povoado chamado, inicialmente, de Samambaia. Posteriormente, o povoado foi renomeado para São Miguel, devido à imagem de São Miguel Arcanjo trazida por uma das primeiras famílias a ocupar o local. Mais tarde, o povoado se tornou um distrito do município de Itaguatins até ser elevado à categoria de município em 1992.

Segundo Santos, o povoado Sete Barracas foi formado por migrantes maranhenses, em meados do século XX, os quais procuravam terras para se estabelecer no norte do Tocantins. A procura de terras ocorria devido ao forte processo de grilagem em terras maranhenses. Os retirantes construíram sete casas de palha –– razão do nome Sete Barracas –– em terras devolutas. No entanto, a partir de 1972, um fazendeiro passou a reclamar a terra do povoado para si, com a anuência do juiz de Itaguatins. Os posseiros foram vítimas de diversas violências, chegando a ser expulsos de suas terras e terem suas moradias destruídas.

Contudo, a luta organizada da comunidade levou à criação do sindicato de trabalhadores rurais e à resistência às violências impetradas por policiais, jagunços e instituições públicas. O conhecimento dos direitos dos posseiros sobre a terra e das formas de pleiteá-los recebia grande contribuição da Comissão Pastoral da Terra (CPT), vinculada a igreja católica. Um expoente da luta pelos direitos dos campesinos na CPT foi o Padre Josimo Morais Tavares, assassinado a mando de um latifundiário em 1986, mesmo ano em que Sete Barracas conquistou a regularização de seu assentamento.

A região do Bico do Papagaio apresenta a maior concentração de florestas de babaçu no Tocantins, sendo o local onde as quebradeiras desenvolvem seu modo de vida e cultura. Em entrevista, Santos esclarece que o modo de vida e cultura são faces de uma mesma moeda. Logo, fazem parte de uma construção social coletiva, do grupo e para o grupo; expressam aquilo que está na memória coletiva e que não precisa ser falado; é a partilha dos mesmos ideais; é a maneira como o grupo experimenta o mundo.

Como o babaçu (Figura 1a e 1b) ocupa um espaço importante no modo de vida das quebradeiras e de suas famílias, as extrativistas aproveitam as partes da palmeira como um todo:

  • O talo das folhas é utilizado na estruturação das casas cujas paredes são preenchidas com barro (Figura 1c);
  • As palhas das palmeiras são utilizadas para cobrir tais casas e fazer cofos (Figura 1d);
  • As cascas do babaçu são utilizadas para fazer carvão (Figura 2a);
  • As amêndoas (Figura 2b) são utilizadas para fazer azeite (Figura 2c), utilizado na comida e no preparo de sabão, e o leite do babaçu, utilizado no preparo de pratos tradicionais;

O gongo, larva de besouro que se alimenta da amêndoa do coco babaçu (Figura 2b), é também extraído e consumido.

Figura 1 - (a) Palmeiras de babaçu no assentamento Sete Barracas, município de São Miguel do Tocantins, TO; (b) Cacho de cocos da palmeira babaçu; (c) Casa coberta com palha da palmeira babaçu;(d) Cofo feito com palha da palmeira babaçu

Fonte: Santos (2021).

Figura 2 – (a) Carvão feito com a casca do coco babaçu; (b) Amêndoa do coco babaçu; (c) Azeite produzido a partir das amêndoas do coco babaçu; (d): Quebradeira de coco utilizando machado e macete para quebrar coco

Fonte: Santos (2021).

Sabão, azeite e carvão são comumente vendidos pelas extrativistas (Figura 2d) nas feiras locais, além de serem utilizados domesticamente. Portanto, possuem relevância na segurança econômica e na segurança alimentar e nutricional. A principal função do trabalho com o babaçu é o sustento dos filhos. Além disso, os artefatos e produtos produzidos a partir da palmeira babaçu possuem relevância intrínseca, pois são símbolos de uma cultura e portadores de um conhecimento tradicional produzido pelas comunidades a que se referem.

As mulheres que realizam os trabalhos extrativos do coco são, em sua maioria, negras, com ancestralidade indígena e com idade superior a 40 anos. Para elas, o lugar onde desenvolvem suas vidas é o lugar onde constroem sua territorialidade.

A territorialidade da quebradeira de coco babaçu está fortemente conectada à palmeira babaçu, por isso, a palmeira é importante na formação da identidade individual e do grupo, na maneira como as extrativistas se comunicam entre si, no sentimento de pertencimento à comunidade e na resistência aos conflitos e violências históricos impostos sobre elas por diversos atores.

Quando há a proibição da entrada das trabalhadoras para realizar a coleta dos cocos nas fazendas privadas/privatizadas[i] que abrigam babaçuais, os donos de terras impedem a conservação e reprodução tanto da cultura como do modo de vida que são próprios àquelas mulheres.

Sendo o território físico um elemento de sustentação da vida física e a territorialidade um elemento de ligação afetivo-emocional relacionado à identidade, o controle físico ou dominação dos babaçuais pelos fazendeiros resulta no fortalecimento de desigualdades infligidas à classe trabalhadora rural extrativista do babaçu. Santos afirma que o direito ao território é uma questão de vida ou morte para as quebradeiras, uma vez que, devido à situação de vulnerabilidade social em que vivem, não poderem trabalhar com o babaçu cria insegurança econômica, alimentar e nutricional.

A continuidade desta classe de trabalhadoras é possibilitada pela existência do babaçu e pela possibilidade de explorá-lo. Além disso, é possibilitada pela transmissão intergeracional dos conhecimentos deste trabalho pelas matriarcas aos filhos, que acompanham suas mães na coleta do coco. Desde jovens, aprendem que o coco babaçu não é apenas uma fonte de renda, mas uma atividade enraizada na tradição e cultura.

Um papel metaforicamente maternal é também exercido pela palmeira do babaçu, a quem as trabalhadoras extrativistas chamam de árvore-mãe, como evidenciado pelo trecho a seguir:

[...] se não fosse o coco babaçu eu não tinha criado nove filho. Eu quebrava coco todo dia pra comprar as coisa pra dentro de casa, que tanto fazia tá inverno ou verão, eu tinha de ir, eu sinto a palmeira, igualmente como uma pessoa, uma vida, quando eu vejo uma palmeira derrubada eu fico triste, que ali tá derrubando uma mãe, que as pessoas derrubam as bichinhas não sei para que, porque ali você quebra o coco, você faz o carvão, você tira o azeite, você faz o sabão, de tudo do coco você se aproveita. O olho de paia, você faz o cofo pra levar pro coco, o pau da palmeira você bota no canteiro, tudo do coco você se aproveita. Que a pessoa quer derrubar um pé de coco é um criminoso, que ali é igualmente uma mãe pra quem não tem dinheiro, pra quem é pobre, eu fico muito triste quando eu vejo isso (Quebradeira de Coco Maria Laurindo dos Santos, São Miguel do Tocantins, 27 maio 2021) (Santos, 2021).

Por fim, o trabalho extrativo do coco estimula a conservação da natureza, dado que respeita fundamentalmente a dependência da trabalhadora do babaçu ao meio ambiente equilibrado que, por sua vez, possibilita à extrativista a reprodução física e cultural.

 

Nota: Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA, 1999), a grilagem se refere à “[...] toda a ação ilegal que objetiva a transferência de terras públicas para o patrimônio de terceiros [...] que tem seu início em escritórios e se consolida no campo mediante a imissão na posse de terras”.

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

[ii] Juscelino Santos é nativo de São Miguel do Tocantins, filho de uma quebradeira de coco babaçu.

Impactos socioambientais de megaempreendimentos sobre comunidades tradicionais da região metropolitana do Rio de Janeiro

Pesquisadores da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) demonstraram que a instalação de complexos industriais na região de Itaguaí, Seropédica, Piraí e Mangaratiba, a partir de 1980, causou intensa desterritorialização das comunidades tradicionais, afetando suas vidas, identidades culturais e o meio ambiente.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 22 fev. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 8 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Carlos A. Sarmento, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Prefeitura Municipal de Itaguaí-RJ, e Márcio A. Vianna, também da UFRRJ, analisaram os impactos da instalação de megaempreendimentos no Território Identitário de Itaguaí (TIdI, pronunciado como tê-i-dê-i). O estudo investigou como a transformação do espaço afeta as comunidades tradicionais da região.

O Território Identitário (TIdI), Figura 1, é um conceito inovador que reconhece a identidade territorial em constante transformação das comunidades tradicionais de agricultores familiares e pescadores artesanais. Mais do que uma divisão física do espaço, o TIdI engloba a região onde essas comunidades desenvolvem suas atividades, construindo sua cultura e modo de vida. Essa relação com o meio ambiente natural, no entanto, é marcada por conflitos contínuos com iniciativas públicas e privadas que disputam o poder sobre o território e geram impactos ambientais.

Figura 1 - Território Identitário de Itaguaí (TIdI)
Nota: O TIdI está localizado entre os municípios de Seropédica, Piraí, Mangaratiba e Bairro de Santa Cruz, RJ
Fonte: Sarmento (2021).

Cinco famílias de agricultores familiares e três famílias de pescadores artesanais estão distribuídas em sete subterritórios rurais (Figura 2): Mazomba (I), Raiz da Serra (II), Chaperó (III), Piranema (IV), Rio da Guarda (V), Coroa Grande (VI) e Ilha da Madeira (VII), apresentados na Figura 2.


Figura 2 - Subterritório do TIdI e entorno
Fonte: Sarmento (2021).

É nesses espaços que os megaempreendimentos se estabeleceram. Um deles é o Complexo Industrial de Santa Cruz e o outro o Complexo Portuário de Itaguaí. Cada um dos complexos reúne empreendimentos de diversos segmentos.

A pesquisa envolveu entrevistas com 38 atores locais, incluindo pescadores artesanais, agricultores familiares, membros da comunidade local (familiares e vizinhos de pescadores e agricultores) e agentes de políticas públicas locais (técnicos, pesquisadores e extensionistas).

A análise dos resultados da pesquisa, complementada pela observação participante, foi organizada em uma matriz analítica que mapeou os impactos do TIdI (Figura 3)

Figura 3 - Matriz de impactos nos subterritórios do TIdI
Fonte: Sarmento (2021).

Os resultados da Matriz de Impactos no TIdI são traduzidos em diversos impactos negativos no TIdI, os quais reforçam a conclusão de que práticas estritamente mercadológicas transformam o espaço a partir de uma narrativa falaciosa, ligada à pujança econômica e qualidade de vida para seus moradores. Porém, os megaempreendimentos culminam em prejuízos, tais como:

  • Privatização dos recursos naturais: a crescente apropriação de recursos naturais por empresas privadas;
  • Ocupação irregular do espaço: construção de empreendimentos e megaempreendimentos sem ordenamento adequado;
  • Legitimação da exploração: a aprovação de práticas exploratórias por parte de agentes públicos;
  • Invasão de comunidades tradicionais: interferência em áreas historicamente ocupadas por comunidades tradicionais;
  • Conivência do poder público: permissão ou tolerância das autoridades a práticas ilegítimas de grandes empreendimentos;
  • Falta de políticas públicas compensatórias: ausência ou insuficiência de medidas que mitiguem os impactos sociais e ambientais;
  • Precariedade dos serviços públicos: serviços básicos, como saúde e educação, são deficientes;
  • Problemas de saúde ambiental: impactos ambientais causando problemas de saúde nas populações locais;
  • Gentrificação: deslocamento forçado de populações tradicionais devido à especulação imobiliária;
  • Degradação do ecossistema: danos ao meio ambiente local devido às atividades humanas.
  • Violência contra comunidades tradicionais: a população tradicional sofre violência física e emocional;
  • Estrangulamento das atividades econômicas tradicionais: dificuldade de manter atividades econômicas locais, como pesca e agricultura;
  • Contaminação ambiental: poluição da Baía de Sepetiba e rios locais por metais pesados e esgoto;
  • Poluição do aquífero Piranema: risco de contaminação das reservas subterrâneas de água;
  • Aumento dos resíduos sólidos: crescente geração de lixo e má gestão dos resíduos;
  • Perda de identidade cultural: as comunidades tradicionais perdem sua identidade e conexão com o território;
  • Desinteresse das novas gerações: as gerações mais jovens não têm interesse em continuar as tradições;
  • Estrangulamento da pesca: diminuição das atividades pesqueiras locais;
  • Zonas de exclusão de pesca: áreas onde a pesca é proibida, impactando a subsistência local;
  • Extinção da agricultura familiar: a agricultura de subsistência está desaparecendo gradualmente;
  • Empobrecimento do solo: degradação da qualidade do solo devido às práticas intensivas;
  • Assoreamento: sedimentação que afeta corpos d'água em diversas escalas;
  • Crescimento demográfico desregulado: expansão populacional sem planejamento;
  • Ocupações habitacionais irregulares: crescimento de moradias informais e ilegais;
  • Destruição de patrimônios históricos: risco de perda de construções e sítios históricos locais.

Os pesquisadores destacam que, diante de tal situação, é de suma importância a presença e a participação efetiva de instituições/órgãos públicos locais e do entorno, como universidades, colegiados, empresas e institutos junto à comunidade local, em especial agricultores familiares e pescadores artesanais, a fim de propor a criação de uma câmara técnica de pesquisa e fiscalização ambiental para o TIdI.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).