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Políticas de saúde indígena, direitos sociais e violência institucional: uma perspectiva Akwẽ-Xerente

Pesquisadoras de três universidades abordaram as falhas nas políticas de saúde para os Akwẽ-Xerente, expondo o contraste entre a medicina tradicional indígena e a abordagem ocidental, muitas vezes imposta sem considerar a cultura local. A pesquisa denuncia a violência institucional que, ao se manifestar na precariedade dos serviços e no desrespeito aos atendimentos, aumenta a vulnerabilidade desse povo.

Por Isaltina Santos da Costa Oliveira[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Bauru-SP | 28 ago. 2024.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2018, no volume 1 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: Trabalhos de Pesquisa e de Extensão Universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Silvania de Jesus Silva, da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Márcia Machado, da Universidade de Brasília (UnB) e Maria Fernanda Dantas Di Flora Gamba, da Universidade Federal Fluminense (UFF), investigaram a implementação de políticas públicas, atuação dos profissionais e a configuração dos serviços de saúde voltados ao povo Akwẽ-Xerente no estado do Tocantins.

O texto é iniciado com a menção ao contato histórico entre os indígenas e não indígenas, que trouxe inúmeros danos à saúde das comunidades indígenas. Desde o período colonial, a imposição das culturas europeias resultou em etnocídio e genocídio e a introdução de doenças desconhecidas pelos povos originários agravou a situação. A violência contra os indígenas não apenas persistiu após a colonização, como se intensificou nas últimas décadas.

De acordo com a pesquisa, para os Akwẽ-Xerente, a saúde vai além da mera ausência de doença. Ela é vista como um estado de bem-estar físico, mental e espiritual, intimamente ligado à relação com a natureza e com os membros da comunidade. As doenças, por outro lado, não são consideradas “naturais” ou “hereditárias” no sentido ocidental, mas sim como consequências de desequilíbrios espirituais ou de relações sociais.

Diante disso, o pajé, ou Sekwa, desempenha um papel central na saúde Akwẽ-Xerente, sendo responsável por diagnosticar e tratar as doenças por meio de práticas xamânicas e do uso de plantas medicinais. Esse saber ancestral, transmitido de geração em geração, é uma das formas de resistência cultural dos Akwẽ-Xerente frente à medicina ocidental, que muitas vezes não respeita ou compreende a profundidade dessas práticas.

Apesar do respeito pela medicina tradicional, os Akwẽ-Xerente reconhecem a eficácia de certos aspectos da medicina ocidental, especialmente para doenças que não podem ser tratadas por seus métodos tradicionais. No entanto, o contato com a medicina ocidental é frequentemente marcado por preconceitos e discriminação. Muitos indígenas relatam experiências de desrespeito e maus-tratos nos postos de saúde e hospitais, onde são vistos como “inferiores” ou “ignorantes” por profissionais de saúde que desconhecem ou desvalorizam suas tradições. 

Para as autoras da pesquisa, os preconceitos sofridos pelos indígenas são um reflexo do etnocentrismo que permeia as práticas de saúde pública no Brasil, em que os valores e normas da cultura dominante são impostos às comunidades indígenas sem consideração por suas especificidades culturais. Como resultado, a saúde dos Akwẽ-Xerente é constantemente negligenciada, e os serviços que recebem são inadequados ou mesmo violentos.

Tais problemas ocorrem à revelia da Constituição Federal de 1988 e a Lei nº 9.836 de 1999, que garantem o direito à saúde para todos os brasileiros, incluindo os povos indígenas. Na prática, esses direitos são frequentemente ignorados. As políticas públicas de saúde para os indígenas, como o Subsistema de Saúde Indígena, são marcadas pela precariedade, pela falta de recursos e pela ineficácia.

O estudo identifica a falta de infraestrutura e a escassez de profissionais capacitados para trabalhar em áreas indígenas como principais problemas. Além disso, a transferência de responsabilidades para a esfera privada, promovida pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), agrava ainda mais a situação, levando à desassistência e à violência institucional contra os povos indígenas.

O desrespeito é agravado pela falta de informações sobre os programas de saúde disponíveis e pela ausência de políticas que realmente considerem as especificidades culturais dos indígenas. Contudo, os Akwẽ-Xerente continuam a lutar por seus direitos. A preservação de suas práticas tradicionais de saúde é uma forma de resistência cultural e um meio de afirmar sua identidade em um contexto de constante ameaça. Eles também reivindicam melhorias no sistema de saúde, incluindo mais recursos, profissionais capacitados e o reconhecimento de suas práticas tradicionais.

 

[i] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (FAAC/Unesp), campus de Bauru. E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Artesanato indígena Warao: mudanças culturais e transformações no processo de produção

Pesquisadoras da Universidade Federal de Roraima (UFRR) evidenciaram as dificuldades enfrentadas pelas artesãs Warao para obter matéria-prima e comercializar seus produtos artesanais. Além disso, ressaltaram a importância da parceria com a ONG Fraternidade - Federação Humanitária Internacional para integração dessas artesãs no mercado de trabalho e a adaptação ao contexto urbano.

Por Isaltina Santos da Costa Oliveira[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Bauru-SP | 27 ago. 2024.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2020, no volume 6 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Hemanuella Karolyne Moura Viana, da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Leila Adriana Baptaglin, também da UFRR, investigaram o processo de mudanças culturais e as transformações na produção do artesanato das artesãs Warao, residentes no Abrigo Pintolândia, em Boa Vista, Roraima.

Os indígenas Warao, também conhecidos como “Povo das Canoas” ou “Povo das Águas”, devido à sua estreita relação com os rios, são oriundos do Delta do Orinoco na Venezuela. Em seu país de origem, mantinham um estilo de vida nômade e ribeirinho, vivendo em cabanas sobre palafitas e sobrevivendo da pesca e da produção artesanal com materiais locais, como a palha de buriti. Refugiaram-se no Brasil em decorrência da crise econômica, política e social em seu país.

Figura 1 - Delta do Orinoco e casas sobre palafitas

Fonte: Viana; Baptaglin (2020).

O Brasil, particularmente o estado de Roraima, tornou-se um destino para esses indígenas em busca de melhores condições de vida. A migração forçada não apenas deslocou os Warao de seu território original, mas os expôs a um processo intenso de aculturação e adaptação.

No Abrigo Pintolândia, as artesãs Warao continuam a praticar o artesanato, mas de maneira adaptada às novas circunstâncias. O abrigo, gerido pela ONG Fraternidade - Federação Humanitária Internacional, oferece suporte às indígenas, incluindo moradia, materiais para produção artesanal e orientação para inserção no mercado de trabalho.

O artesanato, tradicional para a subsistência dos Warao, passou por transformações significativas no novo contexto urbano. Antes, a produção artesanal era uma atividade intrinsecamente ligada ao ambiente natural do Delta do Orinoco, onde as mulheres coletavam e preparavam a palha de buriti diretamente da natureza. Agora, em Roraima, elas enfrentam desafios para obter matéria-prima de qualidade, frequentemente dependendo de doações ou de compras em outros estados brasileiros, o que impacta a qualidade e a autenticidade dos produtos finais.

Figura 2 - Detalhes do artesanato com fibra de buriti

Fonte: Viana; Baptaglin (2020).

Figura 3 - Produção do artesanato Warao

Fonte: Viana; Baptaglin (2020).

Os autores ressaltam que as mudanças na produção artesanal dos Warao não são apenas técnicas, são culturais e identitárias. Isso é evidenciado na adaptação das técnicas artesanais e na modificação dos produtos, como o Duanaká, uma rede tradicionalmente usada para carregar bebês, que agora é produzida mais para venda do que para uso pessoal.

Figura 4 - Indígena usando Duanaká

Fonte: Viana; Baptaglin (2020).

A ONG tem sido fundamental nesse processo de adaptação, pois fornece os recursos necessários para a continuidade da produção artesanal e facilitam a entrada das artesãs no mercado brasileiro, por meio da promoção a venda dos produtos em um contexto completamente diferente do que estavam acostumadas. No entanto, esse apoio também vem com seus desafios, como a dependência de materiais de menor qualidade e a necessidade de adaptar os produtos às preferências de um mercado urbano e muitas vezes distante das tradições culturais dos Warao.

Trata-se de um processo complexo de transformação cultural. A migração e a adaptação ao ambiente urbano de Boa Vista forçam os Warao a reinterpretarem suas tradições, criando novos significados e práticas dentro de um contexto que lhes é diferente. A produção artesanal, que antes era uma expressão direta de sua relação com a natureza e a espiritualidade, agora se transforma em um meio de sobrevivência em um ambiente econômico e cultural diferente.

Este processo de adaptação é um exemplo claro de como a cultura é dinâmica e resiliente, capaz de se transformar e sobreviver mesmo em condições adversas.

 

[i] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (FAAC/Unesp), campus de Bauru. E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Racismo e sexismo contra a mulher negra: violência na música como artefato cultural

Representantes quilombolas e pesquisadores membros da RedeCT realizam diálogo crítico sobre a violência contra as mulheres negras e quilombolas contida em letras de músicas populares brasileiras.

Por Laurenita Gualberto Pereira Alves[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Dianópolis-TO | 27 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2019, no volume 3 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

O estudo examina como as letras musicais perpetuam e reforçam discriminações contra mulheres negras como artefato cultural, destacando a necessidade urgente de um controle social que contraponha essas as narrativas prejudiciais as quais podem enfocar o racismo e o sexismo.

No Brasil, país de vasta riqueza cultural, ainda são observadas posturas preconceituosas e sexistas. As canções, muitas vezes aceitas com naturalidade pelo público, carregam narrativas que esse desconhece, mas as quais fortalecem a discriminação. Nessas narrativas há a presença de conteúdos racistas, depreciativos e ofensivos às mulheres negras, desumanizando-as e objetificando-as. A pesquisa destaca que essa aceitação não é apenas uma falha moral, mas também uma falta de conscientização sobre os efeitos nocivos de tais representações. Ao citar Gonzalez (1982), os autores enfatizam que ser mulher e negra no Brasil significa enfrentar uma tripla discriminação, a que é refletida e perpetuada pela música.

Interseccionalidade de racismo e sexismo

O conceito de interseccionalidade, amplamente discutido por teóricas como Kimberlé Crenshaw, é central para entender as múltiplas camadas de opressão enfrentadas por mulheres negras. No Brasil, o racismo e o sexismo não atuam somente de forma isolada mas se sobrepõem, criando experiências únicas de marginalização. Racismo e sexismo são, portanto, entrecruzados, articulados e interseccionados, reforçando os preconceitos estruturais e fortalecendo as desigualdades sociais. Tais formas de discriminação são normatizadas a ponto de se tornarem quase invisíveis, porém, ainda profundamente prejudiciais.

A música como instrumento de violência contra mulher negra e quilombola

Historicamente, no quilombo, as letras dos descantos, rodas e catiras, enquanto músicas tradicionais feitas pelos catireiros de raiz, numa construção com a mulher, sempre as trouxeram muita sensibilidade, respeito e reverência ao feminino. No entanto, os ritmos e letras têm se distanciado das características à medida que os instrumentos midiáticos chegam às comunidades, ocorrendo mudanças significativas, ao ponto da depreciação da imagem das mulheres quilombolas estar em evidência, ao serem lembradas por comparações, pela condição física, emocional, de poder ou não, quase sempre indesejada por elas.

As novas letras e ritmos desvalorizam as mulheres quilombolas reproduzindo alguns estereótipos negativos como:

  • “Cabelo duro”: expressão utilizada de forma depreciativa para descrever os cabelos crespos ou afro, associando-os a algo indesejado ou inadequado, reforçando padrões estéticos eurocêntricos;
  • “Bombril”: outra expressão pejorativa referente aos cabelos crespos, comparando-os à palha de aço, o que desumaniza e ridiculariza a característica natural dos cabelos de muitas mulheres negras;
  • Referências à cor preta como algo negativo ou sujo: algumas letras associam a cor da pele negra a aspectos negativos, reforçando preconceitos raciais e inferiorizando a identidade negra;
  • Termos que objetificam e hipersexualizam o corpo da mulher negra: palavras e expressões que reduzem as mulheres negras a objetos sexuais, enfatizando estereótipos de hipersexualização que têm raízes históricas desde o período colonial e escravocrata;
  • Estereótipos de comportamentos agressivos ou descontrolados: utilização de palavras que associam mulheres negras a comportamentos como “barraqueira”, “maluca” ou “doida”, desqualificando sua postura e credibilidade social;
  • Expressões que remetem à domesticação ou subserviência: termos que colocam a mulher negra em posições de servidão ou submissão, reforçando estruturas patriarcais e racistas.

Assim, sentimentos têm sido provocados, e, diante da discriminação racial, especialmente na forma do racismo institucional, toda a população negra e quilombola é atingida. Conscientes ou não, as atitudes racistas acabam por gerar epistemologias coletivas, como expresso pelo teórico Crochík:

“Os preconceitos que subjazem o imaginário social expressam, mesmo inconscientemente, o desejo de dominação de uns sobre os outros” (Crochík, 1997).

É uma necessidade social urgente enfrentar o racismo e o sexismo, mas isso deve ser feito sem criminalizar o meio, o canal ou a música, que precisam ser preservados como mecanismos fundamentais de reprodução social e cultural. Embora a legislação antirracista reconheça o racismo como crime, a aplicação das leis ainda é insuficiente, pois falta uma compreensão clara da necessidade de justiça racial.

Controle social como instrumento de defesa

Ao abordar o controle social como um instrumento de contraposição ao racismo e ao sexismo, é importante refletir sobre a representação das mulheres negras e o fortalecimento necessário para enfrentar as diversas formas de violência interseccionadas que as ameaçam.

Em se tratando de estereótipos sobre mulheres negras, a música surge como uma prática que frequentemente inferioriza e ridiculariza suas imagens. Neste contexto, o controle social se destaca como uma ferramenta essencial para combater o racismo e o sexismo.

O controle social é apresentado como uma ferramenta essencial para combater o racismo e o sexismo nas músicas. Este conceito, que ganhou força no Brasil a partir da década de 1980, envolve a participação ativa da sociedade civil na fiscalização e monitoramento das ações do Estado e das próprias práticas sociais. O estudo sugere que, para combater efetivamente a violência cultural disseminada pela música, é necessário um esforço coletivo para regular e criticar essas expressões artísticas, sem criminalizar a arte em si, mas garantindo que ela não perpetue injustiças.

O controle social busca a sustentação de estrutura social mínima que garanta uma sociedade mais respeitosa, estruturada sobre princípios não discriminatórios, e que a música, outrora instrumento de manutenção da tradição cultural ancestral, possa ser utilizada para o enquadramento de pensamentos racistas e sexistas contra minorias, dentre elas, as mulheres.

O desafio posto é que toda(o) cidadã(o) construa diálogos e ações estratégicas de controle social, que possam intervir contra manifestações da epistemologia do racismo velado, coibindo eventuais tendências contemporâneas com novas formas de reações. A partir da vigília ancestral de corresponsabilidade educativa, que tem mantido a sustância das relações e culturas na vida comunitária dos quilombos e na sociedade em geral.

 

 

[i] Doutoranda em Ciências do Ambiente - PPCiamb/UFT. Mestre em Educação - PPGE/UFT. Professora do Estado do Tocantins (SEDUC/TO). Membra da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Comunidades Tradicionais (RedeCT). Membro da Comunidade de Remanescente Quilombola de Lajeado (TO). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Estudo sobre a permanência no ensino superior dos acadêmicos da comunidade Quilombola Lajeado, Tocantins

Grupos de pesquisa da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e da Universidade Estadual Paulista (UNESP) divulgam o resultado de um estudo sobre a permanência de estudantes quilombolas no ensino superior, com foco na Comunidade Quilombola Lajeado, em Tocantins. A pesquisa explora como ações afirmativas, especialmente o Programa Bolsa Permanência, têm sido cruciais para garantir que os acadêmicos possam continuar os estudos. Apesar dos avanços, o estudo revela desafios significativos na implementação as políticas, destacando a importância de fortalecer os mecanismos de apoio para grupos vulneráveis.

Por Jardilene Gualberto P. Fôlha[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Bauru-SP | 28 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2019, no volume 3 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Celenita Bernieri, Jardilene Fôlha, Laurenita Alves, Nelson Russo e José Rocha buscam compreender a dinâmica institucional da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e do Instituto Federal do Tocantins (IFTO) ao promoverem a política pública do Programa Bolsa Permanência, voltada para descendentes quilombolas. Analisar, ainda, as questões socioeconômicas e identitárias dos bolsistas da Comunidade Quilombola Lajeado.

Contexto

Diferentemente da Espanha, que estabeleceu instituições de ensino em suas colônias americanas ainda no século XVI, Portugal evitou a criação de universidades no Brasil, preferindo enviar os filhos da elite para estudar na Europa. Esse atraso na criação de universidades brasileiras perpetuou uma estrutura elitista no ensino superior, que, por muitos anos, foi acessível apenas a um pequeno grupo privilegiado.

A democratização do ensino superior brasileiro começou a ganhar força apenas no final do século XX, impulsionada por movimentos sociais e políticas de ações afirmativas. Esses esforços visavam ampliar o acesso à universidade pública para grupos historicamente marginalizados, incluindo negros, indígenas e quilombolas. Contudo, a inclusão desses grupos no ensino superior trouxe à tona novos desafios, relacionados à permanência desses estudantes nas universidades.

A permanência dos estudantes quilombolas no ensino superior é afetada por uma série de fatores, incluindo condições socioeconômicas precárias, falta de apoio acadêmico e a persistência de atitudes discriminatórias dentro das universidades. Esses obstáculos são agravados pela estrutura rígida e conservadora das instituições de ensino superior, que frequentemente não conseguem fornecer o suporte necessário aos estudantes.

A Política Nacional de Assistência Estudantil

A Política Nacional de Assistência Estudantil, com seus recortes econômicos e étnico-raciais, é apresentada como uma resposta às necessidades dos estudantes de grupos vulneráveis. Criado em 2013, o Programa Bolsa Permanência é uma das principais ferramentas da política, que atua por meio da oferta de auxílio financeiro aos estudantes de instituições federais de ensino superior os quais estejam em situação de vulnerabilidade socioeconômica, com foco especial em quilombolas e indígenas.

O programa tem três objetivos principais:

  • viabilizar a permanência de estudantes em situação de vulnerabilidade;
  • reduzir a evasão estudantil; e
  • promover a democratização do acesso ao ensino superior.

O auxílio financeiro concedido é fundamental para que esses estudantes possam se manter na universidade, cobrindo despesas como moradia, alimentação, transporte e material escolar.

Apesar disso, a pesquisa salienta que a implementação do Programa Bolsa Permanência enfrenta importantes problemas. A comunicação entre as instituições de ensino e as associações quilombolas, que são responsáveis por apoiar os estudantes em seus processos de inscrição e manutenção da bolsa, muitas vezes é falha, resultando em atrasos e erros na concessão do auxílio. Além disso, a falta de clareza nos critérios de elegibilidade e a exclusão de estudantes de cursos à distância têm gerado controvérsias e dificuldades adicionais para os acadêmicos quilombolas.

Nesta pesquisa, foi realizado um estudo de caso junto aos acadêmicos da Comunidade Quilombola Lajeado, localizada na zona rural de Dianópolis, no Tocantins. A comunidade mantém forte ligação com suas raízes culturais e identitárias, sendo composta por pessoas de traços e cultura legítima de antigos escravos refugiados aglomerados em quilombos. A maioria dos habitantes da comunidade, reconhecida pela Fundação Cultural Palmares em 2010, sobrevive de pequenas lavouras, pecuária inexpressiva, aposentadorias, pensões e programas sociais.

Durante a pesquisa, 22 acadêmicos da comunidade estavam matriculados em instituições de ensino superior, com maioria na UFT e no Instituto Federal do Tocantins (IFTO). Desses, 20 recebiam o auxílio financeiro do Programa Bolsa Permanência. Os cursos em que estavam matriculados variavam de áreas como Administração, Engenharia, Ciências Contábeis, até Medicina e Pedagogia.

Por meio de entrevistas realizadas com esses alunos, pode-se observar a importância do auxílio financeiro para a permanência na universidade. Muitos relatam que, sem o auxílio da Bolsa Permanência, não teriam condições de continuar os estudos. O programa permite que despesas básicas sejam cobertas e, por isso, que se concentrem nas atividades acadêmicas, o que aumenta suas chances de sucesso.

No entanto, foram identificados alguns desafios na implementação do programa. A falta de clareza nos critérios de elegibilidade para os estudantes quilombolas e a incoerência na documentação exigida para a concessão da bolsa fazem parte deste rol. Além disso, a falta de divulgação adequada dos serviços e auxílios oferecidos pelas universidades dificulta o acesso dos estudantes a outros tipos de apoio, como assistência à saúde, moradia e participação em eventos acadêmicos.

Outra questão relevante é a exclusão dos estudantes de cursos à distância do programa, cujos impactos negativos são significativos. Acadêmicos nessa modalidade de ensino representam uma parte ampla dos quilombolas, os quais perderam o auxílio financeiro, resultando em evasão e dificuldades para a conclusão dos cursos. Os pesquisadores sublinham que a modalidade à distância é, muitas vezes, a única opção viável para os estudantes quilombolas, que precisam conciliar seus estudos com a vida na comunidade e outras responsabilidades.

Impacto do Programa Bolsa Permanência na vida dos egressos de Lajeado

Muitos ex-alunos conseguiram se formar graças ao auxílio financeiro do programa e agora atuam em suas respectivas áreas de formação, contribuindo para o desenvolvimento de suas comunidades e ampliando perspectivas profissionais.

Ainda assim, dados da pesquisa apontam que a suspensão da bolsa para estudantes de cursos à distância teve efeitos prejudiciais. Alguns egressos relatam que, sem o auxílio financeiro, enfrentaram sérias dificuldades para concluir seus cursos e, em alguns casos, foram forçados a abandonar os estudos. Esse cenário reflete a importância contínua de políticas de assistência estudantil que considerem as realidades específicas dos quilombolas e de outros grupos vulneráveis.

Considerações dos autores

Embora o Brasil tenha feito progressos na democratização do acesso ao ensino superior, a permanência dos estudantes quilombolas ainda depende de um sistema de apoio robusto e bem-implementado. Nesse sentido, há a necessidade de fortalecer e expandir programas como o Bolsa Permanência, a fim de garantir que todos os estudantes, independentemente de sua modalidade de estudo, tenham as mesmas oportunidades para concluir seus cursos. Também fica evidente a centralidade de uma maior e melhor comunicação e colaboração entre as universidades, as associações quilombolas e outras entidades envolvidas na implementação das ações afirmativas.

Ressalta-se que o futuro da educação superior no Brasil deve estar ancorado em princípios de inclusão, diversidade e equidade. Por isso, as universidades precisam continuar a adaptar suas práticas e estruturas para acolher estudantes de todas as origens, assegurando que todos possam alcançar seu potencial máximo, tal que contribuam para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária.

 

[i] Doutoranda em Educação na Amazônia - PGEDA/UFT. Mestre em Educação - PPGE/UFT. Professora do Município de Palmas (SEMED/Palmas). Pesquisadora dos grupos de pesquisas: CNPQ Gepce/UFT-TO e GEDGS/UNESP-SP. Membro da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Povos Originários e Comunidades Tradicionais (RedeCT). Membro da Comunidade de Remanescente Quilombola Lajeado (TO). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).