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A questão do ‘Pertencimento’ sob três “Olhares” Quilombolas de Ser

Focando especificamente no território de Jambuaçu, região Amazônica do estado do Pará, pesquisadores da UNAMA realizam reflexão sobre a noção de pertencimento, considerada vital para a preservação da identidade e da cultura quilombola.

Por Ana Maria Barbosa Quiqueto[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Tupã-SP | 28 ago. 2024

A pesquisa, elaborada por Elziene Souza Nunes Nascimento, Joana D’Arc Alves Paes Andrade e Edgar Chagas Monteiro Júnior, vinculados à Universidade da Amazônia (UNAMA), apresenta um diálogo sobre o conceito do território quilombola de Jambuaçu-PA, local da pesquisa, com vistas à compreensão do sentimento de pertencimento que manifesta entre os quilombolas e o que ele significa em suas vidas cotidianas.

Foram entrevistados três moradores de Jambuaçu, referidos por pseudônimos a fim da preservar as identidades. Entre eles, Maria Luíza e Ana Lima são nativas da comunidade, enquanto Fabrício Alves, que vive no território há 12 anos, se autodenomina aquilombado. Este termo, como explica a moradora Ana Lima, refere-se a alguém que, embora sem raízes culturais diretas com o quilombo, opta por morar e se integrar ao espaço como um agregado. Os questionamentos foram pautados na compreensão das questões relativas à vida pessoal (nome e idade), ser morador do quilombo e, também na concepção do que é pertencimento.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2022, no volume 11 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária.

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Historicamente, quilombos foram entendidos como espaços de resistência, formados por escravos fugitivos, mas essa visão tem evoluído. Atualmente, quilombos são vistos como territórios culturalmente dinâmicos, compostos por populações que mantêm práticas cotidianas de resistência e preservação de seus modos de vida. Tal definição desafia a ideia de que quilombos são espaços homogêneos e isolados, ressaltando sua complexidade social, cultural e política.

No caso de Jambuaçu, histórias locais indicam que o território se formou em torno de três mulheres escravizadas que fugiram e se estabeleceram na região, trazendo consigo a imagem de Nossa Senhora e iniciando uma comunidade baseada na agricultura de subsistência. Hoje, Jambuaçu compreende várias comunidades as quais sobrevivem principalmente da agricultura. A igreja, a praça e a escola formam o centro da vida comunitária.

Entretanto, os dados da pesquisa também expõem as complexidades enfrentadas no dia a dia dos territórios quilombolas. A falta de políticas públicas essenciais para garantir uma cidadania digna é evidente. A precariedade, ou até mesmo a ausência, de serviços básicos como transporte público, saneamento, educação de qualidade e atendimento de saúde é alarmante e exige uma resposta urgente das políticas governamentais.

O Olhar de Maria Luíza: Pertencimento como Vivência Diária

Maria Luíza descreve o pertencimento como um sentimento de orgulho e respeito pelos ancestrais. Para ela, pertencer ao quilombo não é apenas uma questão de localização física, mas de viver e expressar diariamente a identidade quilombola. Seu discurso destaca a resistência ao racismo e a importância de recontar a história dos ancestrais como formas de manter viva a cultura e a identidade quilombola.

Fortemente ancorada na ideia de resistência cultural, a fala de Maria Luíza a cultura quilombola é vista como um ato contínuo de resistência contra a opressão histórica e contemporânea. Ela enfatiza que o sentimento de pertencimento é manifestado em todas as facetas de sua vida cotidiana, desde o trabalho até as interações comunitárias, reafirmando sua identidade quilombola em cada ação.

O Olhar de Ana Lima: Do Silêncio ao Orgulho

Ana Lima compartilha uma experiência inicial de vergonha em se reconhecer como quilombola, motivada pelo medo do preconceito e da rejeição. Esse sentimento, no entanto, mudou quando ela ingressou na faculdade e passou a conhecer melhor a história de seu povo. A educação, neste caso, foi um fator crucial para que Ana Lima reconectasse com sua identidade quilombola e passasse a ter orgulho de suas raízes.

O relato de Ana Lima ilustra a complexidade da identidade quilombola, em que o pertencimento é muitas vezes silenciado pelo medo do preconceito. Sua transformação pessoal, provocada pelo acesso ao conhecimento acadêmico, revela como a educação pode ser uma ferramenta poderosa para a reafirmação da identidade e do orgulho étnico. A história de Ana Lima também evidencia as dificuldades enfrentadas por quilombolas em um contexto de racismo estrutural, onde a aceitação social muitas vezes está condicionada à negação de suas origens.

O Olhar de Fabrício Alves: Pertencimento como Conscientização Política

Fabrício Alves, embora não nativo, descreve seu sentimento de pertencimento a Jambuaçu por meio de uma lente de conscientização política e social. Para ele, pertencer ao quilombo é participar ativamente da comunidade, entender e valorizar suas raízes culturais e lutar pelos direitos enquanto cidadão brasileiro de ascendência africana. Ele destaca a importância de se reconectar com os valores tradicionais e a religião de matriz africana, que muitas vezes são suprimidos pela hegemonia cristã.

Em uma perspectiva única sobre o pertencimento, Fabrício Alves denota ligações que transcendem o simples laço étnico e se tornam uma questão de escolha política e engajamento comunitário. Ao escolher viver em um quilombo e se identificar com essa comunidade, Fabrício reafirma o papel do quilombo como um espaço de resistência e identidade coletiva. Sua visão amplia o conceito de pertencimento, incorporando elementos de ação política e solidariedade inter-racial.

Reflexões e Implicações

A pesquisa revela que o sentimento de pertencimento está presente entre os moradores quilombolas, como evidenciam os relatos dos entrevistados, e que esta é uma construção complexa, influenciada por fatores históricos, sociais e pessoais. No entanto, a análise também aponta que esse sentimento pode ser enfraquecido ou ausente, especialmente quando há desconhecimento das próprias raízes ou medo da rejeição em contextos fora do quilombo.

Diante disso, destaca-se a importância de que os quilombolas tenham acesso à história, cultura e tradições de seu povo. Essa autoafirmação, ou a falta dela, transcende os limites do território de Jambuaçu-PA e reflete uma questão mais ampla na luta pela identidade e reconhecimento dos quilombolas.

Fortalecer o sentimento de pertencimento é crucial para a construção da identidade quilombola, profundamente enraizada nas experiências vividas dentro do território. Promover diálogos que valorizem a história e as experiências dos moradores dessas comunidades pode se tornar uma ferramenta poderosa na luta pela resistência e autoafirmação do povo quilombola.

Além disso, é essencial engajar a comunidade na participação ativa de decisões que impactam positivamente seu cotidiano e suas vivências. Isso pode ser alcançado através da criação de fóruns, grupos de discussão e espaços de escuta, nos quais os quilombolas possam expressar suas necessidades e aspirações.

Por fim, a construção de um conhecimento que priorize a experiência local não só fortalece a identidade comunitária, mas também embasa a luta dessas histórias silenciadas por melhores condições de vida e justiça social.

 

[i] Doutoranda em Ciências/Agronegócio e Desenvolvimento (FCE/UNESP), Bolsista da CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1950187892176976. Brasil. E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Da fala à internet: as práticas comunicacionais dos indígenas da comunidade Truaru da Cabeceira em Roraima

Pesquisadores da UFRR discutem a relevância do midiativismo em favor dos povos tradicionais, com destaque para as redes sociais como estratégia de resistência, sobrevivência, organização e fortalecimento étnico, destacando a vivência e a história oral transmitida por Ariene dos Santos Lima, “Susui”, e o professor indígena Mário Belarmínio, integrantes de uma das onze etnias existentes em Roraima, a Wapichana.

Por Marcos Roberto Terra de Oliveira[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT em Bauru-SP | 28 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 4 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Ariene dos Santos Lima, “Susui”, da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e a Dra. Vângela Maria Isidoro de Morais (UFRR) refletem sobre as práticas comunicacionais desenvolvidas pelos indígenas da comunidade Truaru da Cabeceira, situada na zona rural da cidade de Boa Vista, capital de Roraima. As pesquisadoras realizam uma genealogia dos processos de comunicação no cotidiano da comunidade, desde as expressões elementares como a oralidade às estratégias de comunicação na internet, a exemplo da fanpage “Rede Região Murupu”.

Oralidade e Memória Coletiva

A dinâmica cultural dos povos originários, no decorrer dos séculos, foi pautada pelas histórias orais, transmitidas de geração em geração. Contudo, uma enorme invisibilidade midiática indígena se apresenta como desafio comunicacional contemporâneo para estes povos.

A comunicação é uma ferramenta essencial de sobrevivência e resistência para as comunidades indígenas no Brasil, historicamente ameaçadas pela colonização e outras formas de opressão. A comunidade Truaru da Cabeceira, localizada na zona rural de Boa Vista, Roraima, fornece um exemplo de como as práticas comunicacionais evoluíram, desde a oralidade tradicional até o uso de tecnologias digitais, como a internet, para preservar e fortalecer a identidade e os direitos indígenas. “Susui” por meio da escrita de si como narrativa de pertencimento coletivo, enfatiza um período de mudança, resistência e sobrevivência do povo Truaru na conquista de seus direitos.

Na comunidade Truaru da Cabeceira, a fala desempenha um papel crucial na transmissão de conhecimentos e valores culturais, especialmente por meio das histórias contadas pelos mais velhos. Esses relatos preservam a história e as tradições e reforçam a identidade coletiva do grupo. Em diversos âmbitos, seja o encontro comunitário, seja a assembleia mensal, a oralidade serve como um elo que conecta o passado ao presente, mantendo viva a memória e os ensinamentos ancestrais.

Destaca-se que, para preservarem sua cultura, os indígenas precisaram antes romper com as estratégias dos colonizadores, evangelizadores e educadores durante a colonização, pois tais atores tiveram um papel fundamental na aculturação e assimilação de valores externos às comunidades.

Além da mera comunicação de informações; a tradição oral indígena é um meio de expressar a vida coletiva e de fortalecer os laços sociais dentro da comunidade. As práticas orais incluem narrativas durante rituais, reuniões e eventos comunitários, nos quais cada gesto, pausa e entonação carrega significados profundos. Essa forma de comunicação é intrinsecamente ligada à vivência cotidiana e à ancestralidade.

A Introdução da Escrita

Com o advento da escrita, novas possibilidades de comunicação surgiram para as comunidades indígenas. Embora a oralidade continue sendo fundamental, a escrita tornou-se uma ferramenta crucial para enfrentar os desafios impostos pela burocracia estatal e pela necessidade de formalização de demandas e direitos. Na comunidade Truaru da Cabeceira, o enorme desafio em transpor oralidade à escrita aconteceu por meio da educação. A escrita foi introduzida como uma forma de resistência e sobrevivência na luta pela demarcação do território e pelo exercício contínuo de garantir uma saúde de qualidade para todos.

Na comunidade, a formação de professores indígenas e a criação de escolas foram passos importantes para a apropriação da escrita. No entanto, esse processo não foi isento de desafios. A educação formal trouxe consigo a imposição de normas e valores alheios à cultura indígena, o que gerou um conflito entre as tradições orais e as práticas pedagógicas impostas. Ainda assim, a escrita foi incorporada como uma extensão da luta indígena, uma ferramenta que complementa a força física com a “luta com caneta e papel”.

O Impacto da Tecnologia e da Comunicação de Massa

A chegada da eletricidade e da televisão na comunidade Truaru da Cabeceira, em 2005, marcou um ponto de inflexão nas práticas comunicacionais do grupo. A introdução desses meios de comunicação em massa trouxe novos desafios e oportunidades. Por um lado, a televisão e o rádio ofereceram à comunidade uma janela para o mundo exterior, permitindo que se informassem sobre eventos globais e regionais. Por outro lado, esses meios também introduziram elementos culturais alheios, que passaram a influenciar os costumes e valores locais.

A televisão, em particular, se tornou uma presença dominante nos lares indígenas, alterando significativamente a dinâmica social da comunidade. As rodas de conversa noturnas, que eram uma prática comum antes da eletrificação, começaram a ser substituídas por momentos em frente à televisão. Tal mudança trouxe consigo a necessidade de refletir sobre o impacto dessas novas formas de comunicação de massa e como elas afetam a identidade cultural e a coesão social do grupo

Com a chegada da internet à comunidade Truaru da Cabeceira em um momento em que a tecnologia digital já estava transformando o mundo, a tecnologia trouxe uma nova dimensão à comunicação indígena, ao permitir a criação de plataformas digitais que facilitam a disseminação de informações e a mobilização social. Nesse contexto, o professor indígena Mário Belarmino foi um dos protagonistas e facilitadores, entre os parceiros de Truaru da Cabeceira, para aproximar a internet da escola e da aldeia, no período de 2008 a 2016.

A página “Rede Região Murupu”, criada por membros da comunidade, é um exemplo de como os indígenas estão utilizando a internet para promover suas causas e conectar-se com outras comunidades indígenas e o mundo. Os relatos da pesquisa revelam que as comunidades se apropriaram dos equipamentos e acessos digitais com o objetivo de produzir conteúdo protagonista, manter a vigilância contra todo e qualquer tipo de violência, reforçando constantemente os seus interesses.

No entanto, o uso da internet também apresenta desafios. A falta de infraestrutura adequada e a necessidade de formação contínua para os comunicadores indígenas são barreiras que ainda precisam ser superadas. Apesar disso, a internet representa uma ferramenta poderosa para o “renascimento étnico” no ambiente comunicacional global, proporcionando aos povos indígenas a oportunidade de serem os narradores de suas próprias histórias e de se engajarem em uma rede global de resistência.

De acordo com a pesquisa, o aprender a aprender dos povos tradicionais sofre com o preconceito e a discriminação da sociedade ainda hoje. Todavia a articulação, a persistência, a sabedoria pautada na coletividade, cria oportunidades e afirmações. São exemplos citados por “Susui” o acesso à UFRR aos 18 anos, o Processo Seletivo Específico para Indígenas (PSEI), a internet, a inserção da comunidade no Facebook e os demais meios que proporcionaram visibilidade e atualização cultural para superar essas barreiras coloniais de uma nação individualista.

As práticas comunicacionais na comunidade indígena Truaru da Cabeceira evoluíram significativamente ao longo dos anos, refletindo as mudanças sociais, políticas e tecnológicas enfrentadas pelos povos indígenas em Roraima e em todo o Brasil. Desde a oralidade tradicional até a adoção da escrita e, mais recentemente, o uso da internet, a comunicação tem sido uma ferramenta crucial para a preservação da identidade cultural e a luta pelos direitos indígenas. Apesar dos desafios, a comunidade Truaru da Cabeceira continua a se adaptar e a resistir, utilizando todas as formas de comunicação disponíveis para garantir um futuro onde suas vozes possam ser ouvidas e respeitadas.

 

[i] Especialista em Gestão, Supervisão e Orientação Escolar, UNINTER, mestrando na PPG/COM/FAAC/UNESP-Bauru-SP. Contato: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4189951495353901

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Comunicação e cultura: os impactos tecnológicos nas comunidades indígenas

Com o avanço da tecnologia, comunidades indígenas brasileiras enfrentam o desafio de equilibrar a modernidade com a preservação de suas tradições. Enquanto o acesso à internet e dispositivos eletrônicos cresce nas aldeias, as lideranças indígenas se esforçam para manter vivas suas línguas e costumes ancestrais. A educação, políticas públicas e o apoio de ONGs são essenciais nesse processo, a fim de garantir que a modernização não apague a identidade cultural desses povos.

Por Luís Guilherme Costa Berti[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, Bauru-SP | 27 ago. 2024

Pesquisa de Cristiane Teixeira Bazilio Marchetti, Dra. Cristiane Hengler Corrêa Bernardo e Dr. Timóteo Ramos Queiroz, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp – Câmpus de Tupã), investiga as políticas públicas que garantem o acesso à internet para as comunidades indígenas e como isso influencia suas vidas e hábitos culturais.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2019, no volume 3 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

De acordo com os pesquisadores, o processo de aculturação social tem sido uma constante ameaça aos povos indígenas, pressionando-os a adotar características de culturas não indígenas. Com o advento das mídias digitais e o crescente êxodo de indígenas para áreas urbanas, a nova preocupação entre os anciãos diz respeito a quem preservará os conhecimentos tradicionais.

Tal fato levou ao questionamento da pesquisa sobre como os povos indígenas podem proteger seus saberes tradicionais diante da rápida chegada das tecnologias modernas.

Neste contexto, os autores ressaltam que, historicamente, a narrativa oficial é frequentemente contada pelos vencedores. Nesta situação, os meios de comunicação emergem como ferramentas poderosas para que os povos indígenas, que enfrentaram séculos de dizimação, possam contar suas histórias sob sua própria perspectiva e particularidade histórica.

Manter viva a oralidade ancestral, mesmo diante da pressão para a adoção da língua portuguesa, e preservar os saberes tradicionais são objetivos que podem ser fortalecidos por meio da comunicação em línguas indígenas, assegurando que as vozes originárias sejam ouvidas.

Contextualização

Os povos indígenas têm habitado o Brasil há mais de 500 anos, sendo a colonização um marco transformador na sua história, resultando em perda de direitos e escravização. No entanto, a violência e o preconceito contra esses povos são pouco abordados nos livros didáticos, o que cria um vazio no entendimento da verdadeira história da colonização brasileira.

Uma de suas principais lutas dos povos indígenas é a preservação de sua cultura em meio às influências tecnológicas. Embora tecnologias como televisores, celulares e computadores estejam cada vez mais presentes nas aldeias, os costumes tradicionais continuam sendo passados para as gerações mais jovens.

Como exemplo, os autores citam a aldeia Tenondé-Porã – localizada na zona sul de São Paulo –, cuja Central de Educação Indígena auxilia na preservação da língua e cultura guarani, enquanto seus membros aprendem o português para se comunicarem com os visitantes.,

Nota-se, portanto, que a educação é importante no processo de preservação cultural, sendo uma conquista significativa para garantir que as crianças indígenas tenham acesso ao ensino formal, além do aprendizado cultural transmitido pelas famílias.

O exemplo da Aldeia Tenondé-Porã se desdobra da luta indígena pela criação da Lei 11.645/1996, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura indígenas e afro-brasileiras nas escolas de ensino fundamental e médio, condição que cria oportunidades para a maior conscientização sobre a diversidade cultural do Brasil nas escolas.

Uma segunda e importante luta dos povos indígenas, população de maior concentração na Amazônia, é pela demarcação de terras. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) tem enfrentado dificuldades em garantir esses direitos devido a pressões políticas, especialmente na região amazônica, fato com consequências amplamente negativas quando se considera que os indígenas possuem relação intrínseca com a natureza em seus modos de vida.

A diversidade cultural dos povos indígenas é evidente em suas diferentes línguas e tradições. A tribo Ianomâmi, por exemplo, fala quatro línguas diferentes e acredita em espíritos protetores. A cultura dos Carajás, que vivem às margens do Rio Araguaia, por sua vez, está profundamente ligada à crença de que seus antepassados habitam o fundo do rio. Já os Guaranis são conhecidos por seus trabalhos em cerâmica e rituais religiosos, além de terem sua língua oficial reconhecida no Paraguai desde 1992.

Os Tupis, outra etnia indígena, têm uma forte ligação religiosa com a natureza. Nesta etnia, os pajés são figuras centrais, os quais realizam rituais de cura e consultas espirituais. Ao todo, os indígenas brasileiros falam mais de 100 línguas e dialetos, muitos dos quais influenciaram o português, como no caso das palavras "tapioca" e "mandioca".

A religião dos povos indígenas é predominantemente politeísta, com uma forte conexão com a natureza e o uso de plantas medicinais para curas físicas e espirituais. Apesar da influência da colonização e do cristianismo, muitas tribos ainda mantêm suas crenças tradicionais. A dança e os rituais indígenas são importantes para marcar transições na vida adulta e reafirmar a conexão entre o ser humano e a natureza.

Influência da Mídia e da Tecnologia

A mídia e a tecnologia apresentam um impacto tanto positivo como negativo na cultura indígena. Por um lado, o acesso à internet permite que os indígenas se conectem com o mundo exterior, obtenham informações sobre seus direitos e interajam com outras comunidades indígenas ao redor do mundo. Por outro, a modernização trazida pela tecnologia pode afastar os jovens indígenas de suas tradições, fazendo com que valorizem mais os estilos de vida urbanos e menos suas raízes culturais. Esse dilema é um desafio constante para as lideranças indígenas, que tentam equilibrar a preservação cultural com o uso das novas tecnologias.

Embora as tecnologias modernas influenciem a vida dos povos indígenas, elas também oferecem oportunidades para o fortalecimento da identidade cultural, desde que usadas de maneira equilibrada. A preservação das tradições linguísticas, religiosas e culturais é vista como essencial para que a cultura indígena continue viva e seja passada de geração em geração.

Líderes indígenas como Ailton Krenak, Daniel Munduruku e Davi Kopenawa têm usado a comunicação para ganhar destaque e recontar a história de seus povos, mostrando que a comunicação pode, de fato, ser uma ferramenta para reconstruir narrativas que não são estáticas.

Além disso, ONGs, como a Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAI) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), e lideranças indígenas desempenham um papel crucial na conscientização dos jovens sobre a importância de manter suas raízes em práticas religiosas e culturais próprias, mesmo em meio às pressões da modernidade.

Os pesquisadores compreendem que a cultura indígena é um legado para toda a população brasileira e o respeito e a proteção dessas tradições são fundamentais para a preservação da diversidade cultural no país. Junto a isso, o equilíbrio entre o moderno e o tradicional é essencial para manter a identidade indígena, apesar das mudanças provocadas pela tecnologia.

 

[i] Doutorando em Comunicação, FAAC-UNESP.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Cultura em movimento: uma perspectiva sobre o Tinku

O Tinku, ritual ancestral dos Andes bolivianos, envolve batalhas corporais entre grupos indígenas, oferecendo sangue à Pachamama. Apesar da influência do sincretismo religioso e da modernidade, o ritual ainda preserva tradições em comunidades isoladas como Macha, refletindo a resistência cultural das comunidades indígenas.

Por Luís Guilherme Costa Berti[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, Bauru-SP | 27 ago. 2024

O Doutor Renato Dias Baptista, integrante da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Povos Originários e Comunidades Tradicionais (RedeCT) e professor da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp - Câmpus de Tupã), dedicou-se a uma análise aprofundada das nuances do Tinku.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2023, no volume 12 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora Fi.

Contexto Histórico e Cultural

De início, Baptista realiza uma análise sobre a pluralidade cultural da América Latina, onde indica haver a presença significativa de povos indígenas. Segundo o autor, 45 milhões de indígenas pertencem a mais de 400 povos originários em todo o continente.

A Bolívia, foco da pesquisa, é um dos países mais marcados por essa diversidade. Possui 35 grupos indígenas, entre os quais os quechuas e aymaras formam a maioria. As estatísticas oficiais indicam que 62% da população boliviana é de origem indígena, fato que molda a identidade multicultural do país.

Essa diversidade cultural é fruto de séculos de história, marcada pela chegada dos conquistadores espanhóis, que causaram um brutal deslocamento no desenvolvimento das civilizações locais. O encontro entre o império espanhol e as culturas indígenas foi desigual, dominado pela vantagem tecnológica e militar dos colonizadores. Esse processo colonial gerou uma profunda mistura cultural, tanto no campo étnico como no religioso, persistente até hoje.

O Impacto do Colonialismo e a Luta pela Identidade

Valendo-se de uma citação de Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio, o pesquisador ilustrar a relação conflituosa entre a Bolívia e as potências coloniais por meio do relato de um um incidente ocorrido em 1870. Na ocasião, o o ditador boliviano Mariano Melgarejo humilhou um diplomata inglês, obrigando-o a beber uma quantidade excessiva de chocolate e desfilando-o em um burro pelas ruas de La Paz.

Este incidente simboliza a resistência boliviana à dominação estrangeira e o desprezo das potências imperialistas pela nação andina, que, segundo Galeano, "não existia" para os olhos do mundo imperialista”.

A narrativa de Galeano encapsula a luta histórica da Bolívia contra a exploração externa, destacando como a riqueza natural do país, em vez de beneficiar seu povo, tornou-se uma maldição.

A Bolívia, rica em recursos como gás natural e lítio, continua sendo um dos países mais pobres da América do Sul. Para o autor, a "riqueza fabulosa" da Bolívia condena seu povo a uma pobreza persistente, a qual se reflete em um ciclo de exploração e resistência que se repete ao longo dos séculos.

O Ritual do Tinku: Encontro e Conflito

No coração dessa complexidade cultural encontra-se o Tinku, um ritual indígena que simboliza a resistência cultural e a afirmação identitária. O termo "Tinku" significa "encontro" em quechua, e esse encontro se dá de forma ritualística. Nele, dois grupos antagônicos se enfrentam em uma batalha corporal. O sangue derramado nessas batalhas é uma oferenda à Pachamama, ou Mãe Terra, com o intuito de garantir boas colheitas e a fertilidade da terra.

O Tinku ocorre principalmente nos altos Andes bolivianos, região considerada o "coração" da América do Sul. Lá, quatro grandes bacias hidrográficas se encontram, alimentando importantes rios que fluem para diferentes partes do continente. Essa localização geográfica reforça o simbolismo do Tinku como um ponto de convergência cultural e espiritual.

Para o pesquisador, o Tinku não é apenas uma manifestação cultural, mas também um reflexo de tensões sociais profundas. As batalhas rituais servem para reafirmar o acesso à terra e testar as alianças entre os ayllus, que são comunidades indígenas organizadas. Nesse contexto, o Tinku é uma forma de resolver disputas internas e fortalecer laços comunitários, ao mesmo tempo em que mantém viva uma tradição ancestral.

Sincretismo Religioso e Influências Externas

O sincretismo, definido como a fusão de elementos culturais e religiosos distintos, é um tema central no capítulo. Desde a colonização, o sincretismo religioso foi um mecanismo de sobrevivência cultural para os povos indígenas da Bolívia.

Embora possua raízes pre-hispânicas, o Tinku foi incorporado ao calendário católico pelos colonizadores espanhóis, coincidindo com a celebração da Festa da Cruz. Esse processo de fusão religiosa é visível tanto nos rituais indígenas como nas práticas da Igreja Católica local.

Tal compreensão é reforçada pelas pesquisas do antropólogo italiano Massimo Canevacci quando argumenta que o sincretismo é a chave para compreender as transformações culturais na era da globalização.

Canevacci, segundo Baptista, afirma que o sincretismo não se limita à religião, mas permeia todos os aspectos da cultura, desde os rituais, as vestimentas até as interações sociais. No caso do Tinku, essa fusão cultural é evidente na coexistência de elementos tradicionais com influências modernas, como o uso de telefones celulares pelos participantes do ritual.

Além disso, o sincretismo religioso também se manifesta na maneira como a Igreja Católica em Macha interage com o Tinku. Durante o ritual, a imagem de Jesus é vestida com um poncho e um chicote, elementos típicos da cultura andina, simbolizando a fusão das tradições indígenas com o cristianismo. Essa mistura de elementos sagrados de diferentes culturas é uma característica central do sincretismo boliviano.

Mudança e Adaptação Cultural

Um dos temas abordados pela pesquisa diz respeito às mudanças culturais que afetam o Tinku. O autor observa que os trajes tradicionais do Tinku sofreram modificações significativas ao longo dos anos, com a introdução de novos designs e cores que refletem a influência externa. Essas mudanças, segundo alguns estudiosos, representam a destruição de uma "linguagem de símbolos" que sobreviveu por séculos, o que pode levar à perda da identidade cultural dos ayllus do norte de Potosí.

No entanto, o autor argumenta que a cultura nunca é estática e que o processo de aculturação é inevitável. Ao citar o antropólogo Cuche, enfatiza que nenhuma cultura existe em "estado puro", sem influências externas. O contato cultural, seja por meio do colonialismo, seja por meio da globalização, resulta em um processo contínuo de construção, desconstrução e reconstrução cultural. Esse fenômeno é particularmente evidente no Tinku, em que elementos modernos, como camisetas de times de futebol e smartphones, coexistem com práticas ancestrais.

Resistência Cultural em Macha

Apesar das mudanças e da influência externa, a pesquisa r a resistência cultural em Macha, onde o Tinku ainda é praticado de maneira autêntica. A região de Macha é relativamente isolada, sem muitos recursos turísticos, o que ajuda a preservar a integridade do ritual. As estradas precárias e a falta de comodidades dificultam o acesso de turistas, permitindo que o Tinku continue a ser um evento essencialmente comunitário e no qual as tradições são mantidas vivas, elementos de resistência que garantem a continuidade das tradições culturais dos ayllus.

Análise

Para o Professor Baptista, o Tinku é um exemplo claro de como as culturas indígenas bolivianas estão em constante negociação com o mundo moderno, pois, embora o sincretismo e as influências externas sejam inevitáveis, a resistência cultural em regiões como Macha demonstra que ainda há espaço para a preservação das tradições ancestrais.

Em sua forma atual, o Tinku, continua a ser uma expressão poderosa da identidade indígena boliviana, o que espelha a complexa interação entre tradição e modernidade. Quanto ao futuro do Tinku, o pesquisador afirma que esse dependerá de como as comunidades locais continuarão a equilibrar a preservação cultural com a adaptação às novas realidades sociais e tecnológicas.

 

[i] Doutorando em Comunicação, FAAC-UNESP.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).