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Roda da Sússia de Lajeado: alegria e ancestralidade quilombola

Membros da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Povos Originários e Comunidades Tradicionais (RedeCT) constataram que a dança Sússia, da Comunidade Quilombola de Lajeado, destaca-se como uma das principais manifestações culturais da história dos quilombolas desta comunidade. As marcas da ancestralidade estão presentes nos ritmos, melodias, passos, letras, instrumentos e vestes.

Por Laurenita Gualberto Pereira Alves[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Dianópolis-TO | 27 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2019, no volume 3 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Os professores Nelson Russo de Moraes e Idemar Vizolli, juntamente com suas orientadas quilombolas Celenita Gualberto Pereira Bernieri, Jardilene Gualberto Pereira Folha e Laurenita Gualberto Pereira Alves, apresentaram a prática de roda da Sússia.

A Comunidade Quilombola de Lajeado fica situada no município de Dianópolis, sudeste do Tocantins. Nesta comunidade, a Roda da Sússia é uma expressão cultural rica em ancestralidade quilombola.

A cultura quilombola é fortemente enraizada no respeito pelos mais velhos, sendo transmitida de geração em geração, principalmente por meio da oralidade e da observação das práticas cotidianas. As matriarcas da comunidade, reconhecidas por seu vasto conhecimento, desempenham um papel crucial na preservação dessas tradições.

Relatos orais das moradoras mais idosas da comunidade, como Dona Camila Martins de Deus, indicam que a ocupação do território de Lajeado ocorreu há aproximadamente 200 anos. Esses relatos são fundamentais para manter viva a memória coletiva da comunidade, que se organiza em torno de suas tradições culturais e religiosas. A Roda Sússia data da formação da comunidade

A manifestação cultural da Roda de Sússia se fortaleceu ao longo do tempo e consiste em uma dança culturalmente significativa, a qual representa a autoafirmação identitária da comunidade e a preservação das práticas africanas de dança coletiva.

Envolvendo instrumentos como tambores, violas, pandeiros e palmas das mãos, a dança é marcada pela alegria e reciprocidade entre os participantes, remetendo às raízes ancestrais e à resistência cultural. Durante o período da escravidão, a Sússia era uma das poucas oportunidades de celebração para os escravizados, um momento de reencontro com os seus e de confraternização após longos dias de trabalho.

As manifestações culturais e os costumes vividos pelos antepassados e mantidos pelos grupos existentes constroem e validam a identidade. Neste sentido,

“[...] a cultura e a identidade das comunidades tradicionais estão interligadas com o espaço territorial no qual vivem. A identidade por sua vez, é constituída por uma cultura homogênea, valores e tradições socialmente vivenciados e compartilhados” (PIRES; BERNIERI; FÔLHA, 2018, p. 167).

De acordo com os autores, a prática de roda da Sússia se justifica em virtude das desigualdades sociais, raciais, culturais e identitárias sofridas pelos povos de quilombo.

A Sússia como Manifestação Cultural

A Sússia é descrita como uma manifestação cultural que incorpora aspectos sociais e histórico-culturais, fundamentais para a construção da identidade dos grupos quilombolas. Classificada como patrimônio imaterial, essa dança está em processo de resgate, dado que é essencial para a preservação, valorização e fortalecimento da cultura negra. A Sússia compartilha elementos de danças de roda, como o batuque, e possui uma forte conexão com a ancestralidade africana.

A roda de Sússia na Comunidade Quilombola de Lajeado envolve dançarinos que, ao som de instrumentos percussivos, dançam com energia e alegria. A coreografia envolve homens e mulheres de todas as idades, que harmonizam movimentos e palmas ao ritmo dos pandeiros e caixas. A dança não só entretém, mas também conecta a comunidade com suas raízes africanas.

Os brincantes apontam como uma característica desta dança a sensualidade do seu bailado. Ao entrar na roda, homens e mulheres encenam movimentos impetuosos e provocantes na tentativa de conquistar ou formar o par.

Concomitantemente, há uma energia contagiante envolta a muito suor, risos e alegria dos que dançam em interação com os expectadores, os quais que se veem provocados e vibram com participações diretas ou indiretas, em celebração ao momento com os parentes quilombolas e amigos presentes.

Para o momento da dança Sússia, os participantes utilizam roupas de chitas florais, que, em especial, relembram seus antepassados. O traje são roupas de origem quilombolas. Os homens usam camisas e calças, as mulheres, saias longas e blusa. Todos dançam descalços.

Além da Sússia, a comunidade celebra suas festas religiosas, como a Festa de Reis, em que as danças e músicas tradicionais desempenham um papel central. Essas celebrações combinam elementos do catolicismo com manifestações de matriz africana. Nestas celebrações, há momentos de intensa vivência comunitária, nas quais a música, a dança e a fé se entrelaçam.

O Desafio da Preservação Cultural

Embora a comunidade quilombola de Lajeado se esforce para manter vivas suas tradições culturais, como a Sússia, ela enfrenta desafios significativos, incluindo o preconceito e a influência crescente da modernidade.

A substituição das danças tradicionais pelo som mecânico, por exemplo, ameaça a continuidade dessas práticas. No entanto, a resistência cultural permanece forte, com iniciativas para fortalecer a identidade quilombola e garantir que as novas gerações continuem a praticar e valorizar essas tradições.

Neste contexto, o ensino comunitário desempenha papel vital na preservação da memória e dos saberes quilombolas. A inclusão da Sússia no currículo educacional, tanto formal como comunitário, é vista como uma estratégia essencial para garantir que essa manifestação cultural continue a ser uma parte viva da identidade quilombola. Considera-se que a dança não é apenas uma forma de expressão artística, mas também um meio de autoafirmação e conscientização racial e cultural.

Reflexões

Dados de pesquisa revelam que as danças tradicionais estão diminuindo, visto que as festas tradicionais estão sendo substituídas pelo som mecânico. No entanto, a cultura tradicional vivente tem buscado resistir a essas influências, buscando influenciar e fortalecer as práticas da ancestralidade entre as novas gerações. Por meio da Sússia, a comunidade mantém vivas as tradições de seus antepassados, bem como reafirma sua identidade coletiva.

A comunidade continua empenhada em transmitir essas tradições às novas gerações, garantindo que a Sússia e outras manifestações culturais quilombolas não desapareçam. O ensino comunitário é fundamental nesse processo, proporcionando um espaço no qual as crianças e jovens podem aprender sobre sua cultura e história de forma integrada e significativa.

O desafio é garantir que essas práticas culturais não sejam apenas preservadas, mas também valorizadas e reconhecidas pela sociedade em geral, contribuindo para uma compreensão mais ampla da diversidade cultural do Brasil e para o fortalecimento das identidades quilombolas na contemporaneidade.

 

[i] Doutoranda em Ciências do Ambiente - PPCiamb/UFT. Mestre em Educação - PPGE/UFT. Professora do Estado do Tocantins (SEDUC/TO). Membra da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Comunidades Tradicionais (RedeCT). Membro da Comunidade de Remanescente Quilombola de Lajeado (TO). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

A construção da relação social na infância quilombola por meio do instrumento musical ‘curimbó’ em Pitimandeua/Pará

Pesquisadores da UEPA e UNAMA investigaram papel essencial do instrumento musical ‘curimbó’ na integração das crianças quilombolas à cultura de seus ancestrais. Também abordaram a contribuição da música e dança para a preservação das tradições e para o fortalecimento das relações sociais que sustentam a identidade quilombola.

Por Cássia Amélia Gomes[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Bauru-SP | 27 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 8 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Ana D’Arc Martins Azevedo, da Universidade Estadual do Pará (UEPA) e Universidade da Amazônia (UNAMA), Elziene Souza Nunes Nascimento (UNAMA) e Edgar Monteiro Chagas Junior (UEPA) evidenciam a construção da relação social das crianças da comunidade quilombola Pitimandeua estabelecida nas atividades culturais de seu povo, bem como a afinidade com o instrumento musical ‘curimbó’.

Contexto Histórico e Social da Comunidade Quilombola de Pitimandeua

A comunidade de Pitimandeua, reconhecida oficialmente como quilombola pela Fundação Cultural Palmares, está situada no município de Inhangapi, no nordeste paraense. Sua história remonta ao final do século XIX, quando escravos fugidos de fazendas da região se estabeleceram ali.

Pitimandeua não é apenas um símbolo de resistência, mas também um local de preservação cultural, onde as tradições afro-brasileiras continuam vivas. A principal atividade econômica dos moradores é a agricultura, especialmente o cultivo e beneficiamento da mandioca, um dos pilares da subsistência local.

Contudo, a comunidade enfrenta desafios significativos, como o fechamento de sua única escola, em 2019, devido a medidas de contenção de gastos pela administração municipal. Isso deixou muitas crianças sem acesso à educação formal, exacerbando o isolamento e as dificuldades cotidianas da comunidade.

Diante disso, a liderança local da comunidade quilombola tomou a iniciativa de ocupar as crianças com atividades pedagógicas baseadas na cultura local, em especial o carimbó. O carimbó, uma manifestação cultural típica da região amazônica, é muito mais do que música e dança; é uma expressão de resistência e preservação cultural. O centro dessa manifestação é o ‘curimbó’, um tambor feito de tronco escavado, que dita o ritmo das melodias dançantes.

O Papel da Cultura e do Carimbó na Educação Infantil

O curimbó faz parte das tradições de grande valor da cultura quilombola, sendo representativo nas festas locais, tanto em rituais religiosos – homenagem aos seus santos padroeiros -, como em rituais sociais, como por exemplo, “plantio e colheita da mandioca e da maniva”.

A pesquisa destaca que o curimbó serve como um instrumento para a construção de relações sociais entre as crianças da comunidade, pois, por meio da dança e da música, as crianças desenvolvem laços de solidariedade, além de fortalecerem sua identidade quilombola. As atividades culturais promovidas pela liderança local não apenas mantêm as tradições vivas, mas também proporcionam um espaço para o desenvolvimento social e emocional das crianças.

Observações das crianças quilombolas indicam que o ato de brincar, aliado à prática do curimbó, é fundamental para o desenvolvimento. Segundo a teoria de Vygotsky, o brincar é uma forma de a criança recriar suas vivências diárias, imitando a realidade ao seu redor. No caso das crianças de Pitimandeua, o curimbó não é apenas um instrumento musical, mas também um brinquedo que facilita a aprendizagem e a construção de relações sociais.

O brincar com o curimbó, a dança e a música são momentos de felicidade e liberdade para as crianças, que se afastam das pressões e dificuldades de sua realidade cotidiana. A ausência de brinquedos industrializados e tecnologia é notável, e o tambor se torna o principal meio de entretenimento e aprendizado.

Praticar o carimbó é também uma forma de resistência contra a cultura hegemônica ocidental. A pesquisa registra que, mesmo com poucos recursos e o fechamento da escola, a liderança quilombola conseguiu manter viva a tradição cultural da comunidade, ao criar um ambiente onde as crianças podem se conectar com suas raízes e desenvolver um senso de identidade forte e coeso.

Considerações dos investigadores

O curimbó não é apenas um instrumento musical; é um símbolo de resistência, identidade e coesão social para as crianças quilombolas de Pitimandeua, garantindo que as tradições de seus ancestrais permaneçam vivas e relevantes no contexto contemporâneo.

Essa resistência cultural também é vista como uma forma de preservação das "epistemologias do Sul", que são saberes construídos historicamente por povos marginalizados e que resistem à colonização e ao poder do Estado. A continuidade dessas práticas culturais garante que as próximas gerações mantenham viva a tradição quilombola.

Mesmos diante de recursos limitados, a liderança da comunidade Pitimandeua conseguiu implantar projetos pedagógicos e desenvolvê-los com qualidade, contando com o apoio de acadêmicos oriundos de grupos de pesquisas das universidades da Amazônia paraense.

Com isso, é possível perceber uma perspectiva decolonial, já que o problema instaurado foi abordado pela ótica da resistência desse povo, o qual, mesmo vivendo um momento adverso referente ao fechamento da escola da comunidade e com poucos recursos, desenvolveram um trabalho com maestria, fortalecendo os vínculos de amizades e de afetividade entre as crianças e, principalmente, mantendo a tradição por meio das práticas culturais.

Deste modo, observa-se que a liderança quilombola, ao defender a prática cultural do curimbó, visa estimular as vivências das crianças com esse ritual. Assim, percebe-se a legitimação dos saberes e práticas culturais, ligados à representação identitária que estes sujeitos manifestam pelo pertencer a este espaço e por pertencer a cultura a qual seus ancestrais valorizavam.

 

 

[i] Doutoranda em Ciências (Área: Agronegócio e Desenvolvimento), FCE/UNESP, Bolsista da CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6091510020251169. Brasil. E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

A memória e tradição oral na perspectiva intergeracional da sociedade Akwẽ Xerente

Pesquisadores da UFT, UFG e UEPA revelam que a tradição oral e a memória desempenham papel crucial na preservação cultural, mesmo em tempos de tecnologia avançada. 

Por Cássia Amélia Gomes[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Bauru-SP | 27 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 8 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Joana D’Arc Alves Paes Andrade, da Universidade Estadual do Pará (UEPA), Jocyléia Santana dos Santos, da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e George Leonardo Seabra Coelho, da Universidade Federal de Goiás (UFG) buscaram compreender como a memória e a oralidade servem como pilares para a continuidade da identidade cultural deste povo, especialmente em tempos de rápidas mudanças tecnológicas e culturais. Para isso, apresentaram o diálogo entre três diferentes formas de conhecimento numa perspectiva intergeracional, buscando compreender se a diferença entre o velho e o novo mundo mudou as relações internas desta sociedade.

Segundo os autores, o crescente interesse pela educação indígena no Brasil, refletido em pesquisas acadêmicas e políticas públicas que buscam respeitar e proteger as tradições indígenas, abriu oportunidades para que os povos indígenas se tornassem protagonistas de suas lutas e para que protegessem suas tradições ancestrais.

Tradição Oral

A sociedade Akwẽ Xerente adota a tradição oral como uma forma específica de educação e proteção de seu patrimônio cultural, o que é fundamental para a transmissão contínua de suas tradições.

A tradição oral é descrita como um patrimônio imaterial fundamental para a sociedade Akwẽ Xerente, a qual garante a preservação da história e a transmissão do conhecimento ancestral para as novas gerações. A oralidade é vista como uma forma de imortalizar memórias e manter vivas as narrativas culturais, especialmente em sociedades em que a transmissão de conhecimento tem a forma oral como principal.

Sociedades orais investem muito na transmissão cultural, de acordo com a pesquisa, o que resulta em uma mentalidade tradicionalista e conservadora. Nela, os anciãos desempenham papel crucial como guardiões da sabedoria e da memória cultural.

História e Memória da Sociedade Akwẽ Xerente

O estudo aponta, por meio da história e da memória, que a trajetória dos Xerente é marcada por resistência e bravura na defesa de suas terras e tradições. Inicialmente, resistiram contra os colonizadores e, à época da pesquisa (2019), contra fazendeiros e governo.

Entre as lutas enfrentadas pelo povo Xerente, há a perda de territórios, a disseminação de doenças e a pressão crescente do desenvolvimento econômico sobre suas terras. No entanto, o grupamento indígena se mostra resiliente na proteção das tradições e na luta por direitos, mesmo diante de desafios significativos. Tal resistência é vista como uma parte essencial da identidade cultural deste povo.

O Olhar Intergeracional

Foram realizadas entrevistas com três representantes da etnia: um ancião de 83 anos, um professor de 43 anos e uma liderança feminina de 35 anos. Essas entrevistas forneceram a base para a análise das mudanças intergeracionais na cultura Xerente.

A pesquisa evidencia que os anciãos são vistos como figuras centrais na manutenção da tradição oral e da memória cultural. O ancião entrevistado expressa preocupações sobre o impacto das mudanças modernas na sociedade Xerente, incluindo a introdução de tecnologias e o desrespeito aos direitos indígenas. Apesar dessas mudanças, enfatiza a importância de proteger a terra e as tradições ancestrais para garantir a sobrevivência de seu povo.

O professor destaca a importância da educação formal na sociedade Xerente e como a introdução de tecnologias pode fortalecer a transmissão da cultura tradicional. O docente acredita que as ferramentas digitais são uma forma de documentar e preservar as tradições culturais, permitindo que os jovens Xerente se conectem com o mundo exterior sem perder suas raízes culturais.

Já a liderança feminina Xerente discute o papel das mulheres na sociedade Xerente e como elas estão rompendo barreiras e conquistando maior autonomia. Destaca a importância de proteger as tradições culturais, ao mesmo tempo em que se adaptam às necessidades modernas. Além disso, a líder sublinha, por um lado, os desafios enfrentados pelas mulheres indígenas, tais como, a violência doméstica e a discriminação, e, por outro, como o movimento de mulheres indígenas tem trabalhado para superar essas dificuldades.

Considerações dos autores

Segundo os pesquisadores, as gerações mais velhas e mais novas do povo Xerente estão intimamente relacionadas com a proteção de suas memórias e tradições. Enquanto a era moderna trouxe muitas incertezas, a força dos ancestrais consolidou essa transição entre o velho e novo mundo. Assim, os anciãos carregam sabedoria e guardam a memória de seus ancestrais, enquanto os mais jovens se adaptam aos tempos modernos com base no saber milenar para salvaguardar a memória de seu povo.

Nesse sentido, percebe-se que, como na maioria das sociedades, a modernidade está inevitavelmente próxima da população Xerente, mas suas tradições ainda são protegidas pelo guardião da memória, o ancião, Percebe-se ainda que, enquanto existir, a sociedade Akwẽ-Xerente terá a continuidade do patrimônio cultural de seu povo garantido, assim como as gerações futuras serão fiadoras do conhecimento científico, sendo este o caminho para que passado e presente possam coexistir em harmonia.

Portanto, o processo de interação entre os anciãos e os mais jovens na sociedade Xerente funciona como um elemento importante para manter os ensinamentos, territórios e a conservação das tradições ancestrais que carregam a identidade deste seu povo.

 

[i] Doutoranda em Ciências (Área: Agronegócio e Desenvolvimento), FCE/UNESP, Bolsista da CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6091510020251169. Brasil. E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

O mundo social na educação quilombola

Trabalho de campo realizado por pesquisadoras da UEPA e UNAMA no quilombo Monte Alegre, na cidade de Acará, Pará, aponta os desafios enfrentados por professoras na educação escolar quilombola.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 9 fev. 2024

As pesquisadoras Dra. Ana D’Arc Azevedo[ii] (UEPA e UNAMA), a estudante do curso de Pedagogia Cristiane Souza[iii] (UEPA), e a Dra. Maria Betânia Arroyo (UNAMA) realizaram uma pesquisa junto às professoras da escola na comunidade quilombola Monte Alegre, situada no município de Acará, no estado do Pará, em 2021.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2022, no volume 11 da série Estudos sobre Povos Originários e Comunidades Tradicionais. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Azevedo, Souza e Arroyo buscaram compreender como a sociedade e a cultura do Quilombo Monte Alegre estão refletidas nas práticas educativas das professoras entrevistadas. Para isso, identificaram os conteúdos, as atividades e os problemas enfrentados pelas docentes em trazer a realidade dos alunos para dentro da sala de aula.

Segundo as cientistas, compreender a importância de abordar questões sociais e culturais quilombolas dentro da sala de aula exige, em primeiro lugar, entender o que é um quilombo, e em segundo lugar, por que a educação escolar quilombola se diferencia da educação escolar convencional.

Para definir o termo quilombola, as investigadoras recorreram ao Artigo 2º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. O termo na lei se refere aos grupos étnico-raciais de ancestralidade negra que se consideram quilombolas e cuja trajetória histórica está relacionada a um território específico, onde resistiram à opressão histórica.

Sobre a educação escolar quilombola, as autoras evidenciam que o currículo escolar deve conter a história oficial do continente africano e das relações étnico-raciais de forma não estereotipada, não preconceituosa e não discriminatória, direito assegurado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 10.639/2000) e pelas Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004).

No entanto, os resultados da pesquisa apontam que tais direitos ainda não têm sido integralmente atingidos na educação escolar do Quilombo Monte Alegre. Faltam materiais didáticos de alfabetização pautados numa educação étnico-racial, o que se torna ainda mais desafiador em classes multisseriadas e com estrutura precária, como a da escola estudada.

Em entrevista à RedeCT, Azevedo explica que as classes multisseriadas possuem alunos de diversos níveis numa sala de aula. Esses alunos são atendidos por um único professor. Embora aponte que essa situação não é ideal, a pesquisadora afirma que é comum nas escolas rurais.

Diante desta situação, Azevedo destaca a necessidade da criação de estratégias de formação para os professores no cenário de educação integrada das salas multisseriadas, a fim de minimizar os efeitos dessa configuração nas escolas. Também chama atenção para a forte cobrança exercida sobre os professores pelo sucesso dos alunos nessas condições. Porém, assinala que não há uma contrapartida correspondente às cobranças, já que, muitas vezes, os professores se deparam com a infraestrutura inadequada nas escolas, a falta tanto de treinamento metodológico para a situação de sala multisseriada como de um salário justo para o exercício da função.

O relato da pesquisa mostra que a escola em Monte Alegre é uma escola nucleada, referenciada por uma escola polo não quilombola, que atende a diversas outras escolas não quilombolas. A partir da escola polo, projetos específicos são enviados para execução nas escolas nucleadas, os quais não fazem parte do contexto sociocultural dos alunos quilombolas.

Apesar dessas limitações, as professoras têm empregado recursos para trazer a realidade sociocultural dos alunos quilombolas para dentro da sala de aula. Relatos obtidos na pesquisa mencionam o ensino do cálculo matemático utilizando temas comuns aos alunos, como quantidade de litros de açaí, quilos de farinha de mandioca e frutos da localidade. Ao falaram de preservação da natureza, mencionam os igarapés, comuns na paisagem local, e o impacto de sua não preservação. Em um projeto sobre história, os alunos produziram uma exposição com fotos e cartazes em que contavam sobre as memórias dos integrantes mais idosos da comunidade.

Outras atividades realizadas pelas professoras incluem a confecção de bonecas de pano e corda de sisal; brinquedos e brincadeiras africanas; oficinas de tranças nagô com os pais e os alunos; história das tranças e seu real significado como uma forma de resistência; oficinas para fazer colares, pulseiras, brincos, entre outros adereços, com sementes arrecadadas pelos alunos; confecção de instrumentos musicais utilizando materiais recicláveis e materiais naturais do local; confecção de máscaras africanas; pintura temática quilombola feita pelos próprios alunos; músicas, poesias e história dos povos africanos, entre outras atividades.

Contudo, em sua maioria, as atividades de caráter étnico-racial elaboradas pelas professoras estão concentradas em torno do dia da Consciência Negra, 20 de novembro.

Embora as professoras se empenhem muito em suprir as lacunas deixadas pela inadequação da política pública de educação quilombola no local, as autoras concluem que há a necessidade da formação de um Projeto Político Pedagógico (PPP) para a escola de Monte Alegre, o qual possa ser planejado por todos e todas que vivenciam o ambiente escolar e no qual esteja inclusa a vivência da comunidade.

A Dra. Ana D’Arc esclarece que, para a finalidade de criar um PPP, o conselho escolar, cuja atribuição mais comum é a gestão dos recursos escolares, pode desempenhar papel importante nos rumos pedagógicos da escola. Esta possibilidade se dá pelo conselho ser um órgão colegiado. Assim, se implementada a metodologia participante e democrática para a consecução do PPP, o conselho servirá como espaço para a coleta de informações sobre os processos necessários à elaboração do PPP, para a escuta das partes interessadas, para as deliberações conjuntas e para o posterior condensamento disso num documento formal.

Segundo a entrevistada, apesar de trabalhoso, este processo é fundamental para todas as escolas quilombolas, devido à diferenciação sociocultural do grupo atendido. Azevedo relata que em secretarias municipais de educação que criam coordenações de relações étnico-raciais, a autonomia da escola é promovida e facilitada na busca de uma educação socioculturalmente mais alinhada com o contexto das comunidades a que atende.

A comunidade de Monte Alegre tem passado por um período de aceitação de sua história, seus traços, e suas características físicas, tornando ainda mais clara a necessidade de uma formação continuada sobre a educação quilombola para as professoras, hoje inexistente. As ações mencionadas poderiam contribuir para a inclusão formal da questão sociocultural quilombola no currículo escolar, assim como facilitar o processo educativo por partes das professoras, que teriam o PPP como direcionador no planejamento e execução das aulas e projetos na escola.

De acordo com a Dra. Ana D’Arc, a inserção do mundo social quilombola no PPP e no currículo escolar significa a realização de um diálogo desses instrumentos pedagógicos com as relações sociais reais no quilombo. A autora enfatiza que tal diálogo tem como finalidade prover oportunidades curriculares para que os alunos adquiram consciência crítica, ou seja, saibam argumentar, escrever e contrapor ideias a respeito das heranças históricas de invisibilidades e vulnerabilidades impostas aos povos de matriz africana. Além disso, poderão compreender que o quilombo não é mais um lugar de fuga, mas de resistência, luta, força e potência contra invasões, grileiros, não reconhecimento de terras, entre outras violências.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

[ii] Ana D’Arc é líder do Grupo de Pesquisa, Saberes e Práticas Educativas de Populações Quilombolas (Eduq), na UEPA, e do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Diversidade e Inclusão (GEPID), na UNAMA. A pesquisadora é amazônida-marajoara, nascida em Alenquer (PA).

[iii] Cristiane é quilombola e moradora do Quilombo Monte Alegre, em Acará, Pará, certificado pela Fundação Cultural Palmares por meio da Portaria nº 67, de 8 de abril de 2019 (Diário Oficial da União –– Seção 1, nº 89, 10 de maio, 2019). A terra quilombola não é demarcada e não está em processos de demarcação, segundo informações do Instituto de Reforma Agrária (Incra).