NOTÍCIAS

MATOPIBA em foco: a resistência das comunidades tradicionais no Cerrado

Pesquisadores da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA) discutem como o avanço do Plano de Desenvolvimento Agropecuário (PDA) MATOPIBA nos Cerrados brasileiros tem promovido a expansão do agronegócio em detrimento das comunidades tradicionais. A criação de novas fronteiras agrícolas ameaça modos de vida ancestrais e provoca desmatamento massivo. Enquanto o Estado apoia tal territorialização do capital, comunidades como a sertaneja de Forquilha – no município de Benedito Leite, sudeste do estado do Maranhão – resistem, lutando contra a expropriação e a violência, defendendo suas terras, cultura e formas de subsistência diante das pressões do agronegócio.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 16 abr. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2018, no volume 2 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Raoni Fernandes Azerêdo, docente da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA – Campus de Alenquer), e Saulo Barros da Costa, docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA – Campus Pinheiro), escolheram o seguinte título para o capítulo: ‘O risco que corre pau, corre o machado!’: avanço do PDA MATOPIBA e as formas de luta e resistência de entidades, povos e comunidades tradicionais nos cerrados brasileiros.

Com esse título, os autores fazem alusão a um provérbio popular que reflete uma situação de vulnerabilidade e conflito entre forças desiguais, como a madeira (pau) e o machado. No contexto da pesquisa, a metáfora simboliza a relação desigual entre as comunidades tradicionais (representadas pelo “pau”, que são as vítimas da exploração) e o agronegócio (o “machado”, que avança de maneira agressiva e destrutiva sobre os territórios). A expressão sugere que o risco é constante para os que resistem ao poder de forças externas, como o avanço do agronegócio representado pelo PDA MATOPIBA, mas que tal risco não é unívoco, uma vez que existe a resistência por parte das comunidades. Mesmo diante de uma força avassaladora, como o agronegócio, as comunidades tradicionais respondem com resiliência, reafirmando suas identidades, lutando por seus territórios e resistindo à expropriação e às pressões do capital.

____

A sigla MATOPIBA (Figura 1) se refere à nova fronteira agrícola brasileira que avança sobre os estados do Maranhão (MA), Tocantins (TO), Piauí (PI) e Bahia (BA). O PDA MATOPIBA, por sua vez, é uma iniciativa que tem como objetivo fomentar o desenvolvimento econômico em uma vasta região que, devido às condições naturais, tem sido gradualmente transformada em um polo de produção agrícola de commodities, particularmente soja. Este processo de desenvolvimento, contudo, traz consigo implicações complexas, tanto para o meio ambiente como para as populações locais, que veem seus modos de vida ameaçados pela intensificação das atividades do agronegócio.

Figura 1 - Região do MATOPIBA
Fonte: Azerêdo e Costa (2019).

Segundo os autores, o processo de desenvolvimento citado é acolhido pelo Estado brasileiro, o qual é considerado uma entidade ao serviço das elites econômicas, que atua como um “comitê para gerenciar os negócios da burguesia”, formulação que remete a teorias marxistas, especialmente de Lênin e Gramsci. Essa perspectiva ajuda a contextualizar o PDA MATOPIBA como um projeto de classe, ou seja, uma política pública formulada e executada por frações da classe dominante com o objetivo de consolidar estratégias de acumulação de capital. O agronegócio brasileiro, que surge como principal beneficiário desse plano, é descrito como um setor que, mesmo diante de crises, busca novas formas de expandir suas atividades, sendo o Cerrado a última fronteira agrícola a ser conquistada.

Observa-se que a formulação do plano foi baseada em um acordo entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o Grupo de Inteligência Territorial Estratégica (GITE), da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em 2015. A principal premissa do PDA é a criação de políticas públicas que incentivem o desenvolvimento econômico por meio da agropecuária, fornecendo a infraestrutura necessária para o avanço do agronegócio em uma área de 73 milhões de hectares, dos quais 66 milhões estão no bioma Cerrado. O impacto do plano é sentido principalmente pelas populações tradicionais, que habitam as regiões envolvidas há gerações e que agora se veem sob a ameaça constante de expropriação.

O Cerrado (Figura 2) é um dos biomas mais antigos do Brasil, abriga uma diversidade de espécies e um modo de vida tradicional que está profundamente enraizado no metabolismo entre os grupos humanos e o ambiente natural. No entanto, o PDA MATOPIBA promove uma visão completamente diferente dessa região, tratando-a como um espaço a ser mercantilizado e transformado em um motor de produção agroindustrial. Essa transformação, conforme apontado pela pesquisa, segue uma lógica histórica e colonial de exploração da terra, na qual a grande propriedade fundiária e o monocultivo substituem o uso sustentável e comunitário da terra pelas populações tradicionais.

Figura 2 - Abrangência das áreas do cerrado no Brasil
Fonte: Azerêdo e Costa (2019).

Embora o PDA seja o projeto mais recente, há uma conexão histórica entre o agronegócio e o Cerrado, exemplificada pelo Programa Nipo-Brasileiro de Desenvolvimento dos Cerrados (PRODECER), projeto financiado pela Agência Japonesa de Cooperação Internacional (JICA) que visava promover o cultivo de soja e outros produtos agrícolas no bioma. O PRODECER foi implementado nas décadas de 1970 e 1980 e representou um marco na inserção do Cerrado na lógica de financeirização global, transformando a região em um eixo estratégico na produção de commodities agrícolas. Essa transformação, no entanto, não ocorreu sem impactos. O Cerrado, que no início dos anos 1970 cultivava apenas 20 mil toneladas de soja, viu esse número saltar para 29 milhões de toneladas no início dos anos 2000. Tal expansão (Figura 3) agrícola levou à destruição de milhões de hectares de vegetação nativa e continua a crescer em ritmo acelerado, com 52% da produção de soja no Brasil concentrada no bioma.

Figura 3 - Expansão agrícola no Cerrado

Fonte: Azerêdo e Costa (2019).

O avanço do agronegócio no Cerrado, de acordo com os pesquisadores, é parte de um processo maior de acumulação por espoliação, conceito central na obra de David Harvey. Esse processo envolve a apropriação de terras e recursos naturais pelas elites econômicas, muitas vezes às custas de populações vulneráveis, como as comunidades tradicionais. Neste sentido, na visão dos autores, o PDA MATOPIBA é um exemplo claro desse tipo de acumulação, na medida em que promove a territorialização do capital nas áreas mais ricas e férteis do Cerrado, ao mesmo tempo em que expropria as terras ocupadas historicamente pelas comunidades locais. A lógica por trás desse processo é a de que o capital precisa de novos espaços para continuar a acumular riquezas, e o Cerrado, com suas vastas áreas de terras planas e férteis, oferece exatamente esse tipo de oportunidade.

Todavia, as transformações no Cerrado não ocorreram sem resistência pelos afetados pelos projetos de desenvolvimento, as comunidades tradicionais. A comunidade sertaneja de Forquilha, localizada no município de Benedito Leite, no sudeste do Maranhão, é um exemplo emblemático disso. A comunidade existe há mais de 50 anos e viu sua rotina pacífica e seu modo de vida sustentável serem interrompidos pela chegada de fazendeiros interessados em expandir a produção agrícola na região. Assim, a comunidade foi gradualmente pressionada a deixar suas terras devido, inclusive, à intimidação e ao uso de violência dos fazendeiros.

Um exemplo de violência e intimidação foi a contratação, pelos fazendeiros, de jagunços armados para patrulhar a região, ameaçando os moradores e destruindo suas plantações e propriedades. A polícia local, em vez de proteger a comunidade, atuava ao lado dos fazendeiros, ignorando as queixas dos moradores e, em alguns casos, participando ativamente das ameaças. A resistência da comunidade de Forquilha, contudo, foi fortalecida pelo apoio de organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outras entidades que atuam na defesa dos direitos das populações tradicionais. Mesmo diante de ameaças constantes, a comunidade conseguiu obter uma liminar judicial que garante sua permanência nas terras, embora o processo legal ainda estivesse em curso à época da pesquisa.

A expansão do agronegócio na região é também motivo de grandes impactos sobre o meio ambiente e a cultura local. A devastação causada pela plantação de eucalipto na região de Forquilha causou danos irreparáveis, destruindo a vegetação nativa e afetando diretamente o modo de vida dos moradores. O Cerrado, antes uma fonte de alimentos, remédios e outros recursos naturais, foi transformado em um deserto verde de eucaliptos, privando a comunidade de suas fontes tradicionais de sustento. A perda da biodiversidade é acompanhada pela perda de saberes tradicionais, como o conhecimento sobre plantas medicinais e alimentos do Cerrado, que foram transmitidos por gerações, mas agora estão ameaçados de desaparecer.

Para os autores, embora a situação das comunidades tradicionais seja alarmante, as formas de resistência cultural e religiosa são destacadas como elementos fundamentais para a preservação de identidades e para a continuidade da luta tradicional. A festa do Divino Espírito Santo e a umbanda, praticadas pela comunidade de Forquilha, são exemplos de como a cultura e a espiritualidade podem fortalecer os laços comunitários e oferecer uma base para a resistência. O IV Encontrão da Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, realizado em Forquilha em 2016, é descrito como um momento crucial de mobilização, no qual diferentes comunidades se uniram para trocar experiências e fortalecer suas lutas contra o agronegócio.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Desafios jurídicos e culturais das comunidades tradicionais brasileiras

Membros do Grupo de Estudos em Democracia e Gestão Social, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), discutem os direitos dos povos e comunidades tradicionais no Brasil quanto à relação com o território e os desafios enfrentados para o reconhecimento legal de terras. Também examinam a importância da biodiversidade e o papel das comunidades na preservação ambiental, além de discutir a proteção dos patrimônios materiais e imateriais tradicionais. Com base em legislações nacionais e acordos internacionais, o texto enfatiza a luta das populações tradicionais por justiça, dignidade e sustentabilidade.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 8 abr. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2018, no volume 2 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Laís de Carvalho Pechula, Sérgio Leal Mota e Nelson Russo de Moraes analisam os direitos dos povos e comunidades tradicionais no Brasil, abordando as questões legais, territoriais, culturais e ambientais que envolvem tais populações. Com base em uma leitura crítica da legislação brasileira e internacional, o texto examina as dificuldades enfrentadas pelas comunidades para garantir seus direitos sobre territórios, recursos naturais e conhecimentos ancestrais, oferecendo uma visão detalhada de como esses elementos se interconectam e refletem na luta por justiça e dignidade.

A história dos povos tradicionais no Brasil é intrinsecamente ligada ao território, tanto no sentido físico como simbólico. Desde o início da colonização, foram marginalizados, deslocados e, muitas vezes, invisibilizados pela sociedade nacional, que buscava se modernizar e expandir fronteiras em detrimento das populações indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais. A perspectiva dominante via esses grupos como “atrasados” e “obstáculos” ao desenvolvimento, o que contribuiu para a exclusão deles do processo de construção da nação brasileira.

No entanto, o texto ressalta que os povos tradicionais representam uma parcela significativa da população e ocupam cerca de um quarto do território brasileiro, vivendo em todas as regiões do país. O reconhecimento da sua importância para a preservação ambiental e para a diversidade cultural é relativamente recente, e o Decreto nº 6.040, de 2007, marca um avanço importante nesse sentido.

O decreto institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, reconhecendo formalmente, pela primeira vez, a existência e os direitos desses grupos. De acordo com o decreto, os povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados que se reconhecem como tais e que possuem formas próprias de organização social, utilizando territórios e recursos naturais para a reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica.

O território é descrito pelos autores como sendo mais do que uma questão de posse da terra para as comunidades. Ele é tanto um espaço físico como um componente essencial da identidade cultural, espiritual e social. O território é onde estão enterrados seus ancestrais, onde ocorrem rituais sagrados, e onde se desenrolam as relações simbólicas que dão sentido à sua existência. A noção de território, portanto, vai além das fronteiras geográficas impostas pelo Estado e se estende para o campo das memórias, tradições e saberes que mantêm os povos unidos e conectados com a natureza.

Destaca-se, no entanto, que o reconhecimento jurídico dos direitos territoriais das comunidades tradicionais enfrenta muitos obstáculos. Um dos principais deles é a burocracia e a rigidez do sistema jurídico brasileiro, que, desde a promulgação da Lei de Terras de 1850, exige documentos de posse formal para o reconhecimento de propriedade. Isso coloca os povos tradicionais em uma posição de desvantagem, pois suas ocupações e reivindicações de terra nem sempre são compatíveis com o sistema legal imposto. Além disso, os territórios das comunidades frequentemente se estendem por mais de um município ou estado, o que cria complexidades adicionais no processo de demarcação e reconhecimento legal.

A Constituição Federal de 1988 foi um marco importante na consolidação dos direitos territoriais das comunidades tradicionais, especialmente para indígenas e quilombolas. Os artigos 231 e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias garantem a essas populações o direito às terras tradicionalmente ocupadas e preveem a proteção de suas culturas e modos de vida. No entanto, os pesquisadores sublinham que, apesar dos avanços legais, ainda há uma lacuna significativa entre o que está previsto na legislação e a sua implementação efetiva. Muitos povos tradicionais continuam sem acesso formal a suas terras, o que aumenta o risco de violência, exploração e deslocamento forçado.

Outro aspecto importante da pesquisa é a relação das comunidades tradicionais com a biodiversidade, as quais são detentoras de conhecimentos profundos sobre o manejo sustentável dos recursos naturais e desempenham papel fundamental na preservação do meio ambiente. A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), assinada pelo Brasil durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro em 1992, reconhece a importância da preservação da biodiversidade e estabelece a necessidade de uma repartição justa e equitativa dos benefícios derivados do uso dos recursos naturais. A CDB é um dos principais instrumentos internacionais que visam promover o uso sustentável dos recursos e garantir que as comunidades que detêm o conhecimento sobre esses recursos sejam recompensadas de maneira justa.

Nesse contexto, o Protocolo de Nagoya, aprovado em 2010 durante a décima Conferência das Partes da CDB, surge como um complemento essencial à convenção, estabelecendo normas mais detalhadas sobre o acesso a recursos genéticos e a repartição dos benefícios gerados a partir de seu uso. O protocolo é uma resposta direta às preocupações com a biopirataria e a apropriação indevida de recursos naturais e conhecimentos tradicionais. A implementação do Protocolo de Nagoya no Brasil foi formalizada com a promulgação da Lei nº 13.123/2015, que estabelece as condições para o acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado, além de garantir a proteção dos direitos das comunidades.

A Lei nº 13.123/2015 facilita o acesso às informações e aos materiais genéticos ao desburocratizar o processo de pesquisa, substituindo a autorização formal por um simples cadastro, o que representa um avanço para a pesquisa científica. Ao mesmo tempo, a lei cria mecanismos de proteção para os conhecimentos tradicionais, garantindo que as comunidades que detêm esse saber sejam devidamente compensadas. Além disso, a criação de um fundo nacional para a repartição de benefícios visa promover a conservação da biodiversidade e o uso sustentável dos recursos naturais, ao mesmo tempo em que beneficia as comunidades tradicionais.

A Constituição de 1988 reconhece também a relevância dos bens imateriais, entendidos como aqueles que são portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diversos grupos que compõem a sociedade brasileira. Os artigos 215 e 216 da Constituição estabelecem a defesa da diversidade cultural e protegem as manifestações culturais que contribuem para a formação da identidade nacional. Isso inclui rituais, saberes, práticas e tradições transmitidas de geração em geração.

A preservação do patrimônio imaterial se mostra importante para a continuidade das culturas tradicionais, que muitas vezes se veem ameaçadas pela pressão da modernidade e pela falta de políticas públicas adequadas. A proteção jurídica desses conhecimentos e práticas é uma questão de respeito aos direitos culturais das comunidades tradicionais e de preservação de um patrimônio que é fundamental para a humanidade como um todo. Os saberes tradicionais, especialmente relacionados à biodiversidade e ao manejo sustentável dos recursos naturais, são cada vez mais valorizados como alternativas para enfrentar a crise ambiental global.

Os autores concluem que, apesar dos avanços alcançados no reconhecimento e proteção dos direitos das comunidades tradicionais, ainda há muito a ser feito. As leis e os decretos existentes representam passos importantes na direção certa, mas sua implementação ainda é insuficiente para garantir a plena realização de direitos. A luta por território, cultura e sustentabilidade continua a ser uma batalha diária para muitas comunidades tradicionais no Brasil.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Bolívia: um panorama das diversidades culturais

Docente brasileiro e pesquisadora boliviana estudam o multiculturalismo na Bolívia, destacando a diversidade étnica e a importância da valorização da cultura local para a integração social, política e econômica do país. Com foco na ascensão indígena e nas transformações promovidas durante o governo de Evo Morales, o texto analisa a relação histórica de exclusão dos povos indígenas e as mudanças recentes que buscam incluí-los no cenário político.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 12 mar. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2018, no volume 1 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Renato Dias Baptista, professor na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, e Carmen Liliana Rocha Ustarez, professora na Universidad Pública de El Alto, explicam como a Bolívia é marcada pela multiplicidade de etnias e pela convivência dos povos indígenas com um Estado centralizador. Desde a colonização, as instituições bolivianas serviram à elite eurodescendente, enquanto os indígenas eram marginalizados. Essa exclusão gerou tensões sociais e políticas, agravadas por traumas históricos, como a perda de território.

Com a eleição de Evo Morales, o país iniciou uma nova fase, com a inclusão das populações indígenas. Morales, de origem indígena, colocou essa questão no centro de seu projeto político, resultando no reconhecimento da Bolívia como um Estado Plurinacional, formalizado pela Constituição de 2009. Essa nova configuração garantiu direitos políticos e territoriais às comunidades indígenas, permitindo-lhes maior participação nas decisões nacionais.

No entanto, apesar desses avanços, a Bolívia continua enfrentando dificuldades. As comunidades indígenas ainda sofrem com a discriminação e a exclusão econômica, especialmente em função da dependência do país em recursos naturais, como gás e petróleo. Muitas dessas riquezas estão localizadas em terras indígenas, expondo essas comunidades a um dilema: de um lado, o desenvolvimento econômico do país; de outro, a preservação ambiental e cultural. As políticas de extração têm sido criticadas por movimentos indígenas que exigem maior respeito por seus territórios, enquanto outros grupos defendem a continuidade do modelo de exploração para garantir o crescimento econômico.

Essas tensões também são agravadas pela instabilidade jurídica da Bolívia, onde o sistema judicial é vulnerável à interferência política, o que gera incerteza tanto para investidores quanto para as comunidades indígenas. A arbitragem de conflitos entre empresas e o Estado muitas vezes não protege adequadamente os interesses indígenas.

Com mais de 30 grupos étnicos reconhecidos oficialmente, os Aymaras e Quechuas são os mais representativos, somando mais de dois milhões de pessoas. Esses povos mantiveram suas tradições culturais desde o período pré-colonial, mesmo após a colonização espanhola. Sua presença na política boliviana é significativa, moldando tanto a participação direta no governo quanto as políticas públicas de desenvolvimento.

Segundo os autores, a valorização das culturas indígenas e o reconhecimento de seus direitos são fundamentais para a construção de uma sociedade justa e inclusiva. No entanto, a Bolívia ainda enfrenta o desafio de equilibrar o desenvolvimento econômico com a preservação de sua diversidade cultural e ambiental. A chave para o futuro do país está na sua capacidade de integrar esses diferentes interesses, promovendo uma sociedade que respeite as culturas locais e avance de forma sustentável.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Ciganos, entre o esquecimento e a discriminação

Pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) apresentam uma visão sobre a história e a cultura cigana que, apesar do reconhecimento oficial como comunidade tradicional, enfrenta marginalização e desconhecimento generalizado de sua cultura.

Por Victor Hugo Silva Souza[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Bauru-SP | 28 ago. 2024.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 10 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: Trabalhos de Pesquisa e de Extensão Universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Ricardo Alexandre de Araujo Monteiro Lobo e Laise de Holanda Cavalcanti Andrade, da UFPE, fornecem uma visão sobre a história e a cultura cigana em um cenário que compreender as especificidades do povo cigano ao redor do mundo não é tarefa fácil, pois as comunidades não possuem tradição escrita – a língua destes povos é conhecida como romani ou chib, e a transmissão dos saberes se dá por meio da oralidade, já que se trata de uma língua ágrafa.

Originários do Noroeste da Índia, os ciganos migraram para os Balcãs, entre os séculos X e XVIII, e posteriormente para a Europa Ocidental (Figura 1). Estudos linguísticos e genéticos confirmam essa origem indiana, reforçada pela presença de dialetos neo-hindus. Ao chegarem à Europa, os ciganos enfrentaram discriminação severa. Lendas populares os associavam a práticas como canibalismo e sequestro de crianças, estereótipos que agravaram seu isolamento.

Figura 1 - Hipótese mais aceita para a diáspora dos ciganos do século X ao XVIII

Fonte: Lobo; Andrade (2021).

Na Península Ibérica, os ciganos chegaram provavelmente pelo estreito de Gibraltar ou pelos Pirineus, com registros datando do século XV. Em Portugal, começaram a ser deportados para o Brasil ainda no século XVI, como parte de uma política de expulsão de “malfeitores”.

Ainda no século XVI, na cidade de Salvador (BA), são feitos os primeiros registros tratando da presença da etnia no país. Esses primeiros ciganos contribuíram para a formação das comunidades ciganas no Brasil, onde enfrentaram novos desafios, mas também influenciaram a cultura local. Entre os séculos XVII e XVIII a coroa portuguesa determinou que fossem radicados nas capitanias de Pernambuco e Bahia, junto a outras categorias de malfeitores, até então, todos oriundos da Península Ibérica. A pressão governamental no fim do Império e na Primeira República levou diversos grupos de ciganos a se tornarem sedentários, seja em comunidades rurais seja em meio urbano.

A identidade cigana é fortemente centrada em valores espirituais e materiais, tendo sido altamente influenciada pelos contatos culturais ao longo de sua história. As relações de parentesco e o respeito pelos idosos são pilares fundamentais da organização social cigana. Os idosos são considerados repositórios vivos da história e das tradições, e sua morte é comparada à perda de uma biblioteca.

Estudos recentes indicam a existência de uma população de mais de 800.000 ciganos no Brasil, espalhados por mais de vinte estados do país, a grande maioria nas regiões Nordeste e Sudeste. Estabelecem-se especialmente em cidades com população entre 20 e 50 mil habitantes, concentrando-se nas periferias desses municípios. As mulheres declaram-se, quase sempre, como artesãs, enquanto os homens são, em sua maioria, comerciantes.

Dados do IBGE de 2011 indicam a existência de 291 acampamentos ciganos (Figura 2) em todo o país, concentrados principalmente em estados como Bahia, Goiás e Minas Gerais. Contudo, esses números são provavelmente subestimados devido à natureza seminomádica de algumas comunidades e ao medo da discriminação.

Figura - Distribuição das comunidades ciganas, por município - Brasil, 2011

Fonte: Lobo; Andrade (2021).

Em Pernambuco, por exemplo, o número de municípios com comunidades ciganas é maior do que o registrado oficialmente, com estudos locais identificando a presença de ciganos em 22 municípios. Essa discrepância ilustra a dificuldade em mapear e entender plenamente a população cigana no Brasil.

Entre os grupos ciganos, destacam-se os Rom, Sinti e Calon, cada um com características culturais e linguísticas distintas. No Brasil, a maioria dos ciganos pertence ao grupo Calon, que tem se adaptado às regiões em que vivem, incorporando aspectos da cultura local em sua música, vestimenta e religião.

No entanto, essa adaptação não significa a perda total de sua identidade. Os ciganos mantêm práticas tradicionais, como o uso de plantas medicinais, apesar de muitas dessas tradições estarem em risco de desaparecer devido à sedentarização e à influência da sociedade moderna.

Relatos da pesquisa evidenciam que, no Brasil, as famílias ciganas geralmente vivem em condições precárias, com acesso limitado a serviços básicos como água encanada e saneamento. A desconfiança e o preconceito por parte das autoridades e da população local complicam ainda mais a sua situação. Por exemplo, a associação entre ciganos e criminalidade é um estereótipo comum, levando a perseguições injustas e perda de oportunidades, como o emprego.

Junto a isso, o futuro dessas tradições está em risco. A juventude cigana, influenciada pela modernidade e pela necessidade de inclusão na sociedade, mostra pouco interesse em aprender sobre as práticas tradicionais. A perda da cultura nômade, uma das características mais marcantes dos ciganos, está associada a essa mudança. Um exemplo deste fenômeno é a preferência dos jovens por medicamentos farmacêuticos às ervas medicinais tradicionais, traço cultural bastante relevante nas gerações anteriores.

Apesar de tais impasses, houve avanços no reconhecimento e na inclusão dos ciganos no Brasil. O Decreto de 25 de maio de 2016, que instituiu o Dia Nacional do Cigano em 24 de maio, marcou o início do reconhecimento oficial dos ciganos como uma comunidade tradicional com direitos específicos. Além disso, políticas públicas, como a regulamentação da não obrigatoriedade de domicílio permanente para a obtenção do Cartão Nacional de Saúde, foram implementadas para atender às necessidades dessa população.

A grande maioria dos ciganos brasileiros e da etnia Calons, costumeiramente nômades. Porém, em razão do alta taxa de analfabetismo, entre outros fatores, os Calons têm deixado o nomadismo, a fim de que os jovens tenham acesso à educação formal. Vale frisar ainda que, embora nascidos no Brasil, a maioria dos ciganos não se entendem como brasileiros.

Para os pesquisadores, diante deste quadro, compreender as necessidade e especificidades dos grupos ciganos no Brasil possibilitaria a melhor inserção desses grupos na sociedade brasileira, assim como reflexões acerca de aspectos como saúde e educação do povo cigano.

 

[i] Mestrando em Ciências (Área: Agronegócio e Desenvolvimento), PGAD, Unesp -Câmpus de Tupã.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).