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Diálogo entre os saberes indígenas e os saberes científicos na Universidade Federal do Tocantins

Pesquisadores abordam o diálogo entre saberes indígenas e científicos na Universidade Federal do Tocantins (UFT). Focam na interculturalidade e ecologia dos saberes, analisando os desafios enfrentados pelos estudantes indígenas, como barreiras linguísticas, currículos eurocêntricos e exclusão social. Propõem a capacitação de professores, reforma curricular e políticas de permanência para uma verdadeira integração dos saberes tradicionais no ambiente acadêmico.

Por Cristiane Teixeira Bazilio Marchetti[i] e Fernando da Cruz Souza[ii]| RedeCT, em Tupã-SP | 28 ago. 2024.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2020, no volume 5 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

De autoria de Maria Santos, Suzana Nunes, Romário Nascimento e Carine Nunes, a pesquisa explora a integração e o diálogo entre os conhecimentos tradicionais indígenas e o saber acadêmico. Faz-se uma reflexão sobre a presença crescente de estudantes indígenas na Universidade Federal do Tocantins (UFT) e os desafios inerentes à inserção de seus saberes no ambiente universitário. A análise parte da ideia de que os saberes não são apenas construções intelectuais, mas também expressões de culturas, e, nesse sentido, o diálogo entre esses conhecimentos não ocorre apenas no campo do pensamento, mas envolve a transformação dos sujeitos e das relações de poder que os sustentam.

A ideia de interculturalidade desafia a hegemonia do saber ocidental, ainda predominante nas universidades brasileiras. A proposta teórica da interculturalidade surge como uma alternativa ao modelo tradicional de produção de conhecimento que, frequentemente, marginaliza ou desqualifica saberes que não se encaixam nos parâmetros científicos convencionais. O conceito é reforçado por Boaventura de Sousa Santos, por meio da ideia da ecologia dos saberes, que propõe um diálogo entre conhecimentos hegemônicos (como o científico) e não hegemônicos (como os saberes indígenas ou populares). Para Santos, essa ecologia é fundamental para reconhecer a infinita pluralidade dos saberes e buscar uma conjugação adequada de conhecimentos para enfrentar desafios sociais e ambientais complexos.

O questionamento sobre a estrutura de poder nas universidades faz da interculturalidade uma crítica direta à colonialidade do saber. A colonialidade do saber refere-se à desvalorização dos conhecimentos não europeus ou não ocidentais, que são vistos como inferiores, irrelevantes ou supersticiosos. Este fenômeno é particularmente evidente na relação da academia com os saberes indígenas, muitas vezes considerados “locais” ou “tradicionais”, enquanto o saber científico é tratado como universal e superior.

Como muitas universidades brasileiras, a UFT tem implementado políticas de ação afirmativa, reservando uma porcentagem de vagas para estudantes indígenas e de outros grupos tradicionalmente marginalizados. No processo seletivo de 2018, por exemplo, a universidade ofereceu 5% de suas vagas para estudantes indígenas, e a maior parte dessas vagas foi preenchida, marcando um aumento significativo em relação a anos anteriores.

Apesar do avanço no acesso, os desafios enfrentados pelos estudantes indígenas são numerosos. Entre os principais obstáculos estão as barreiras linguísticas, já que muitos estudantes indígenas têm o português como segunda língua, o que complica o acompanhamento das aulas e a compreensão dos materiais didáticos.

Além disso, o ensino tradicional baseado em uma lógica individualista e competitiva se choca com os valores comunitários e coletivos das culturas de origem indígena. De acordo com os autores, professores da UFT relataram que, em muitos casos, os estudantes indígenas têm dificuldade em integrar-se plenamente ao ambiente acadêmico, tanto por causa da linguagem como por uma falta de conexão entre o conteúdo ministrado nas aulas e as experiências e saberes que esses estudantes trazem consigo.

Os próprios professores enfrentam dificuldades em lidar com a diversidade cultural nas salas de aula. Muitos deles indicaram que se sentem despreparados para mediar o diálogo entre os saberes científicos e os conhecimentos indígenas. Há, de acordo com os relatos, uma clara lacuna na formação pedagógica dos professores no que tange à educação intercultural. Muitos não conhecem suficientemente a realidade dos estudantes indígenas e, como consequência, têm dificuldade em adaptar suas práticas de ensino para tornar o conteúdo mais acessível e relevante para alunos indígenas.

Colonialidade e ensino intercultural

No contexto da UFT, a colonialidade é evidente não só na ausência de conteúdo curricular que aborde os saberes indígenas de forma significativa, mas no modo como os estudantes indígenas são tratados. Muitos deles relatam experiências de discriminação e exclusão, seja por parte de outros alunos seja de professores. Alguns estudantes indígenas disseram que evitam revelar a identidade indígena para não serem alvos de preconceito.

A colonialidade do poder é observada quando se discute a posição hierárquica dos saberes indígenas em relação ao saber científico. Enquanto o saber acadêmico ocidental é considerado objetivo e racional, o conhecimento indígena é visto como subjetivo, místico e desprovido de valor científico. Essa hierarquização impede que os estudantes indígenas se sintam plenamente integrados à vida acadêmica, pois suas experiências e conhecimentos são sistematicamente desvalorizados.

Um dos caminhos para a transformação desse cenário é a capacitação de professores. A formação docente voltada para o reconhecimento e valorização dos saberes indígenas e outras formas de conhecimento é uma maneira de promover a verdadeira interculturalidade no ambiente acadêmico.

Os estudantes indígenas também apontaram a necessidade de que a universidade ofereça aulas de português como segunda língua, além de criar espaços de troca de saberes dentro da própria instituição. A pesquisa sugere que a UFT poderia promover eventos interculturais, seminários e projetos de extensão que permitissem maior interação entre os estudantes indígenas e não indígenas, e entre os saberes acadêmicos e tradicionais.

Outro ponto importante é a criação de um currículo mais flexível e inclusivo, que considere as diferentes formas de aprendizado e de organização social dos povos indígenas. Atualmente, o currículo das universidades é fortemente centrado em uma lógica de competição e individualismo, que contrasta com os valores coletivos e colaborativos que predominam em muitas culturas indígenas. A introdução de novas práticas pedagógicas, como trabalhos em grupo e a produção coletiva de conhecimento, poderia ajudar a tornar o ambiente acadêmico mais acolhedor para os estudantes indígenas.

Além disso, um aspecto crítico é a permanência dos estudantes indígenas na universidade. Embora o acesso tenha aumentado, ainda há muitas barreiras que dificultam a continuidade desses alunos nos cursos de graduação. Além das dificuldades linguísticas e culturais, muitos estudantes enfrentam desafios econômicos e sociais, como a falta de recursos financeiros e a distância entre suas comunidades e os campi universitários.

Segundo os pesquisadores, a permanência depende da criação de políticas mais robustas de apoio estudantes indígenas. Isso inclui a ampliação de bolsas de estudo, o fornecimento de moradia estudantil e a oferta de apoio psicológico e pedagógico contínuo. Junto a isso, a universidade precisa criar uma cultura de respeito à diversidade, que combata o preconceito e a discriminação dentro e fora das salas de aula.

 

[i] Mestre em Ciências/Agronegócio e Desenvolvimento (FCE/UNESP). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

A lei n° 11.645/2008 na perspectiva indígena: os desafios e possibilidades decoloniais no contexto de retrocesso político

Pesquisadores abordam a Lei n° 11.645/2008, que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Discutem os desafios e as possibilidades de implementação da lei, destacando a necessidade de uma educação decolonial e intercultural crítica, que inclua e valorize os saberes indígenas, enquanto promove a ruptura com visões eurocêntricas e constrói uma sociedade mais justa e inclusiva.

Por Cristiane Teixeira Bazilio Marchetti[i] e Fernando da Cruz Souza[ii]| RedeCT, em Tupã-SP | 28 ago. 2024.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 7 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Os pesquisadores Marcelo Stortti, Thelma Ramos, Edson Machado de Brito, Samir Mortada e Mirela Ferreira, analisaram a aplicação da Lei n° 11.645/2008 sob uma perspectiva decolonial, destacando os desafios e possibilidades no ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena.

A Lei n° 11.645/2008 determina a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena nas escolas de educação básica no Brasil. Foi aprovada em 2008 devido às mobilizações de organizações indígenas e movimentos sociais indigenistas, que vinham reivindicando o reconhecimento das culturas e histórias dos povos originários no currículo escolar.

A legislação reflete uma tentativa de romper com o silenciamento histórico dessas culturas nas escolas e de corrigir uma série de distorções, como visões eurocêntricas que dominavam o ambiente educacional brasileiro, nas quais os indígenas eram muitas vezes retratados de forma genérica, caricata e preconceituosa.

A retratação a ser combatida pela lei é a do “índio” como um ser selvagem, homogêneo e restrito ao passado. Anteriormente à lei, o conteúdo da história indígena era, em grande parte, tratado de forma superficial, muitas vezes apresentado como algo pertencente a um tempo remoto, sem conexão com o presente. Com a Lei 11.645/2008, esse cenário começou a mudar, criando espaço para o reconhecimento da diversidade cultural e histórica dos povos indígenas no Brasil.

Embora a aprovação da lei tenha sido um passo importante, a implementação tem sido um processo lento e enfrentado resistências. Uma das maiores dificuldades está na desconstrução de práticas pedagógicas tradicionais e profundamente enraizadas em uma visão eurocêntrica da história. Edson Kayapó, intelectual indígena citado no texto, destaca que, mesmo com a garantia de direitos sociais na Constituição de 1988, a sociedade e o Estado brasileiro ainda resistem em admitir formas alternativas de organização social e cultural que rompam com a hegemonia ocidental.

Diante disso, os autores sublinham a importância de uma “reinvenção” da educação, na qual a história do Brasil seja contada também a partir do ponto de vista indígena, e não apenas pela ótica dos colonizadores europeus. Isso requer uma mudança profunda na forma como o currículo é estruturado e ensinado nas escolas, desde a educação infantil até o ensino médio. Para isso, os professores precisam ser capacitados a trabalhar com temáticas como a luta por territórios, os impactos do agronegócio e do desmatamento, e as formas de resistência e organização política dos povos indígenas, de modo que possam ir além dos estereótipos e realmente incorporar a riqueza cultural e histórica dos povos indígenas e afro-brasileiros.

O contexto político de 2021, ano de publicação da pesquisa, impôs novas barreiras a implementação da lei. O retrocesso nas políticas públicas voltadas para a educação e os direitos das minorias étnicas coloca em risco os avanços obtidos até então. A resistência de setores conservadores, tanto dentro como fora das escolas, também contribui para dificultar a implementação da lei. Muitos ainda veem a inclusão dessas temáticas no currículo escolar como uma ameaça à ordem estabelecida ou uma “politização” indevida do ambiente escolar.

Colonialidade e a educação

A colonialidade se refere à maneira como as estruturas de poder colonial continuam a operar, mesmo após a independência formal dos países colonizados. No caso da educação brasileira, a colonialidade se manifesta na forma como o currículo é construído a partir de uma perspectiva eurocêntrica, relegando a história e cultura indígenas e afro-brasileiras a uma posição subalterna.

Quijano, um dos autores elencados na pesquisa, argumenta que a colonialidade não se limita ao domínio político e econômico, mas abrange o controle do saber e do ser. Isso significa que o sistema educacional, ao longo da história, tem sido um instrumento poderoso na imposição de uma visão de mundo ocidental e na desvalorização dos conhecimentos e práticas dos povos originários. A educação, portanto, torna-se um espaço de disputa, em que diferentes formas de saber e de ser competem por reconhecimento.

A desconstrução da visão colonizadora exige uma abordagem decolonial, a qual valorize as epistemologias dos povos indígenas e afro-brasileiros e as incorpore no currículo. Para que isso aconteça, é necessário, segundo os autores, um esforço deliberado de professores, gestores educacionais e formuladores de políticas públicas a fim de romper com a lógica hegemônica e abrir espaço para outras formas de conhecimento.

Nesse sentido, a “interculturalidade crítica”, que se distingue de uma interculturalidade superficial, é importante, embora muitas vezes limitada a eventos pontuais ou folclóricos dentro das escolas. A interculturalidade crítica propõe uma relação de diálogo genuíno e simétrico entre culturas, no qual o conhecimento indígena e afro-brasileiro é tratado com o mesmo valor e relevância que o conhecimento ocidental.

No Instituto Federal da Bahia (IFBA), algumas experiências pedagógicas (Figura 1) têm buscado colocar a interculturalidade crítica em prática. Um exemplo é o projeto de ensino “Educação e Saberes Indígenas”, que promove oficinas sobre histórias indígenas, grafismo corporal e outras expressões culturais dos povos originários. Numa dessas oficinas, os alunos tiveram a oportunidade de conhecer a cultura do povo Sateré-Mawé, da Amazônia, e aprender sobre suas práticas e saberes tradicionais, como o uso de grafismos corporais, que não são meramente estéticos, mas expressões de identidade e resistência.

Figura 1 - Oficinas pedagógicas

Fonte: Stortti; Ramos; Machado de Brito; Mortada e Mirela Ferreira (2021).

De acordo com os autores, experiências como essa são fundamentais para descolonizar o currículo e permitir aos alunos, tanto indígenas como não indígenas, ter uma compreensão mais ampla e crítica da história e da sociedade brasileira. Ao interagir diretamente com tais culturas, os alunos podem questionar as visões preconceituosas e eurocêntricas que foram naturalizadas ao longo dos anos.

Análise dos pesquisadores

O capítulo conclui com uma reflexão sobre a necessidade de se construir “outros modos de olhar” para a diversidade cultural e étnica no Brasil. A partir das diretrizes estabelecidas pela Lei 11.645/2008 é possível repensar as práticas pedagógicas e criar um ambiente educacional que valorize a pluralidade de saberes e culturas presentes no país.

A decolonização do currículo escolar não é apenas uma questão de incluir novos conteúdos, mas de mudar a forma como esses conteúdos são ensinados e compreendidos. A interculturalidade crítica, conforme proposto pelos autores, oferece uma via para essa transformação, ao propor um diálogo simétrico entre diferentes epistemologias e ao reconhecer o valor dos saberes indígenas e afro-brasileiros.

Para que essa transformação seja efetiva, no entanto, é necessário um compromisso contínuo por parte de educadores, gestores e políticas públicas. A luta por uma educação mais justa e inclusiva não se encerra com a promulgação de leis, mas requer um esforço constante de resistência e inovação pedagógica, especialmente em contextos de retrocesso político e social.

A educação decolonial e intercultural crítica, portanto, não se limita a uma reforma curricular. Representa uma mudança mais profunda na forma como a sociedade brasileira se vê e se relaciona com suas múltiplas identidades, abrindo caminho para a construção de uma sociedade mais plural e equitativa.

 

[i] Mestre em Ciências/Agronegócio e Desenvolvimento (FCE/UNESP). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Língua, cultura e identidade: os desafios dos indígenas no ambiente escolar urbano

Pesquisadoras da Universidade Federal de Roraima (UFRR) tematizam os problemas enfrentados por alunos indígenas em escolas urbanas no município de Boa Vista, Roraima, onde a falta de inclusão cultural e a violência simbólica ameaçam a construção de identidades. Resultados da pesquisa descrevem a negligencia da diversidade no ambiente escolar, a qual força os alunos a ocultarem suas origens culturais para se adaptarem. O estudo pauta a necessidade urgente de políticas públicas que garantam uma educação verdadeiramente inclusiva, em que a cultura e a língua indígenas sejam valorizadas no contexto escolar urbano.

Por Cristiane Teixeira Bazilio Marchetti[i] e Fernando da Cruz Souza[ii]| RedeCT, em Tupã-SP | 28 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2019, no volume 3 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

A pesquisa elaborada por Wellen Crystinne de Araújo Sousa e Leila Adriana Baptaglin, ambas pesquisadoras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), apresentam um diálogo que surgiu a partir do questionamento: como o ambiente escolar urbano influência na construção identitária do aluno indígena? A partir desse questionamento, as pesquisadoras foram à uma escola estadual de Roraima, situada num bairro periférico da capital Boa Vista. Lá observaram e entrevistaram um aluno do sexo masculino, estudante do 9º ano do ensino fundamental, com 14 anos de idade, da etnia Wapixana, cujo pseudônimo é Leonardo, sobre relação com os seus pares.

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O Brasil é um país marcado por impressionante diversidade cultural; nesta, a cultura indígena ocupa um lugar de destaque. A Constituição de 1988 assegura, no artigo 231, o reconhecimento das organizações sociais, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas, garantindo-lhes o direito de serem e permanecerem como indígenas. O reconhecimento é um passo importante na luta pela preservação das culturas indígenas, especialmente em um país cuja história de contato entre povos originários e colonizadores foi marcada por conflitos e tentativas de assimilação forçada.

O estado de Roraima, um dos mais ricos em terras indígenas, com a presença de diversas etnias, como os Makuxi, Taurepang, Wapixana e Yanomami, contribui para a formação de uma paisagem culturalmente diversa. Historicamente, os povos indígenas têm lutado pela demarcação de terras e pelo reconhecimento de direitos. No entanto, nas últimas décadas, um aumento significativo na migração de indígenas para áreas urbanas tem ocorrido, em especial para a capital do estado, Boa Vista. A migração é motivada por um conjunto de fatores, incluindo a busca por melhores condições de vida, oportunidades de emprego e acesso à educação, oportunidades frequentemente ausentes nas comunidades indígenas mais isoladas.

Dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), de 2010, indicavam a presença de 324.834 indígenas vivendo em áreas urbanas no Brasil. Em Roraima, as etnias Makuxi e Wapixana são as que mais se destacam no que diz respeito à migração para as cidades. Tal fenômeno levanta questões sobre a preservação da identidade cultural indígena em ambientes urbanos, onde a pressão para a assimilação cultural é muito mais intensa. No ambiente escolar urbano, por exemplo, os filhos de indígenas estudam ao lado de alunos não indígenas e essas interações culturais podem influenciar profundamente a construção identitária dos alunos indígenas. A escola urbana pode representar tanto uma oportunidade quanto uma ameaça à identidade cultural.

A falta de inclusão da cultura indígena no currículo escolar

Apesar de a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) estabelecerem a obrigatoriedade da inclusão da história e cultura afro-brasileira e indígena no currículo escolar, a realidade das escolas urbanas está distante dessa norma. As observações realizadas na pesquisa revelam que os conteúdos ministrados nas escolas seguem um padrão nacional homogêneo, sem considerar as especificidades culturais dos alunos indígenas. Isso resulta em um currículo que marginaliza e invisibiliza as culturas indígenas, tratando-as como exceções e não como partes integrantes da formação da identidade nacional.

Esse problema é exacerbado pela falta de preparo das escolas para lidar com a diversidade cultural. As instituições de ensino raramente possuem um plano pedagógico que integre a cultura indígena ao cotidiano escolar. As metodologias utilizadas tendem a ser baseadas em modelos ocidentais, sem adaptação para atender às necessidades culturais específicas dos alunos indígenas. Isso cria um ambiente no qual a cultura indígena é constantemente silenciada e desvalorizada, o que pode ter impactos profundos na construção identitária dos alunos.

Neste contexto, um dos conceitos centrais na pesquisa, o de “violência simbólica”, contribui para a compreensão dos dilemas educacionais para a diversidade, tal como a indígena, em escolas urbanas. Cunhado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu para descrever formas sutis e insidiosas de dominação cultural, a violência simbólica ocorre quando as culturas dominantes impõem seus valores e normas às culturas minoritárias, de maneira inconsciente. No contexto escolar, isso se manifesta quando as culturas indígenas são marginalizadas ou tratadas como inferiores em relação à cultura dominante.

O caso de Leonardo, um aluno indígena da etnia Wapixana, exemplifica como essa violência simbólica pode impactar profundamente a identidade de um estudante indígena. Leonardo relata que, após ingressar na escola urbana, começou a sentir vergonha de seus costumes e tradições. O sentimento de vergonha é um reflexo direto da falta de valorização da cultura indígena no ambiente escolar. A escola, ao não reconhecer e valorizar a identidade cultural de Leonardo, contribui para a desintegração de sua autoestima e para a fragmentação de sua identidade.

Tal fragmentação também se manifesta em relação à língua materna, um dos pilares fundamentais da identidade cultural. Para os povos indígenas, a língua não é apenas um meio de comunicação, mas uma forma de preservar e transmitir conhecimentos, tradições e formas de ver o mundo. No caso de Leonardo, a língua Wapixana desempenha papel fundamental na identidade cultural. No entanto, essa língua é usada exclusivamente no ambiente familiar e na comunidade indígena, enquanto na escola e em outros espaços urbanos, Leonardo se comunica em português.

Essa divisão linguística é um indicador claro do conflito identitário que Leonardo enfrenta. Na escola, onde a língua portuguesa é a única aceita, a identidade indígena de Leonardo é reprimida. Esse processo de substituição linguística ameaça tanto a sobrevivência da língua Wapixana como a identidade cultural de Leonardo. Ao não valorizar a língua indígena, a escola desempenha um papel ativo na erosão dessa identidade.

Isso ocorre, pois não há preparo das escolas para receber e incluir alunos indígenas. Isso é evidente desde a ausência de professores indígenas até a inexistência de conteúdos que abordem a história e a cultura dos povos indígenas. Assim, cria-se um ambiente em que os alunos indígenas são forçados a esconder ou abandonar suas identidades culturais para se adaptarem ao modelo educacional dominante.

Leonardo se sente inibido ao expressar sua identidade indígena na escola. Segundo ele, ao tentar compartilhar aspectos de sua cultura com seus colegas e professores, foi ignorado ou até mesmo ridicularizado, resposta que reforça a marginalização da cultura indígena e contribui para a construção de uma identidade fragmentada. Com isso, Leonardo se sente forçado a adotar uma identidade que não é sua para ser aceito no ambiente escolar.

A importância da alteridade e da diversidade cultural na educação

A situação relatada destaca a importância da alteridade, ou seja, do reconhecimento e respeito ao outro como diferente na construção de um ambiente educacional verdadeiramente inclusivo. A realidade das escolas urbanas está distante desse ideal quando, e a falta de alteridade fica expressa na reprodução de modelos educacionais hegemônicos, que desconsideram a diversidade cultural dos alunos.

Sabendo que a construção identitária é um processo complexo que envolve a interação de vários fatores, incluindo a cultura, a língua e as experiências pessoais, para os alunos indígenas em escolas urbanas, esse processo é ainda mais complicado, pois devem navegar entre duas ou mais identidades culturais, muitas vezes estão em conflito.

A fala de Leonardo indica que ele está constantemente negociando entre sua identidade indígena e a identidade que lhe é imposta pela escola urbana. Esse processo de negociação é marcado por conflitos internos e externos, pois Leonardo se sente dividido entre sua comunidade indígena e o ambiente urbano. Esse processo de negociação identitária pode ter impactos profundos na autoestima e no bem-estar emocional de Leonardo.

Por tais motivos, é inequívoca a necessidade de que as políticas públicas sejam fortalecidas para garantir que os direitos constitucionais dos povos indígenas sejam plenamente respeitados e que a educação nas escolas urbanas seja verdadeiramente inclusiva. Neste sentido, a revisão do currículo escolar para incluir a história e a cultura dos povos indígenas ao cotidiano escolar, valorizando a diversidade cultural dos alunos é fundamental. Além disso, a contratação de professores indígenas, o desenvolvimento de materiais didáticos que reflitam a realidade dos alunos indígenas e a criação de espaços onde esses alunos possam expressar suas identidades culturais sem medo de discriminação ou represália também se fazem necessários.

Somente através de uma educação verdadeiramente inclusiva será possível preservar a rica diversidade cultural que constitui a identidade nacional brasileira. A educação deve ser um espaço em que os alunos, independentemente de sua origem cultural, possam se sentir valorizados e respeitados. Para os alunos indígenas, isso significa ter a oportunidade de aprender em um ambiente que reconheça e valorize sua cultura, sua língua e sua identidade.

 

[i] Mestre em Ciências/Agronegócio e Desenvolvimento (FCE/UNESP). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Protagonismo, centralidade e autonomia dos povos quilombolas: a experiência da Cartografia Social na Comunidade de Ribeirão em Brumadinho/MG

Pesquisadores da PUC-Minas exploram a importância da cartografia social como ferramenta de resistência e empoderamento para a comunidade quilombola de Ribeirão, em Brumadinho/MG. Ressaltam que a cartografia social contribui na preservação, autonomia, identidade e direitos territoriais dos quilombolas frente às pressões externas.

Por Ana Maria Barbosa Quiqueto[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Tupã-SP | 28 ago. 2024

A pesquisa, elaborada por Amanda Ribeiro Carolino e Armindo dos Santos de Sousa Teodósio, ambos da Pontíficia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), tematiza as as contribuições de um estudo de caráter extensionista do Núcleo de Pesquisa em Ética e Gestão Social (NUPEGS), vinculado ao Programa de Pós-graduação em Administração (PPGA), da PUC-Minas. A pesquisa teve como local a comunidade quilombola de Ribeirão, onde, desde 2021, são desenvolvidas oficinas de cartografia social. Os resultados da análise foram publicados em 2022, no volume 11 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária

Protagonismo Quilombola e Cartografia Social: A Resistência Territorial de Ribeirão

Para os autores, em um contexto de resistência histórica e luta por autonomia, a cartografia social funciona como ferramenta de empoderamento para comunidades quilombolas, especificamente para a comunidade de Ribeirão, localizada em Brumadinho, Minas Gerais.

Tradicionalmente, a cartografia é vista como uma ciência técnica, destinada à representação física de territórios. No entanto, essa abordagem convencional ignora, muitas vezes, as complexas dinâmicas sociais e culturais que moldam os territórios. A cartografia social, em contrapartida, emerge como uma prática que valoriza essas dimensões, pois busca mapear o espaço físico enquanto incorpora as experiências e narrativas dos grupos que habitam os territórios.

O estudo, do tipo pesquisa-ação, se insere nessa nova concepção de cartografia, dado que visa dar voz aos quilombolas de Ribeirão. Isso ocorre por meio da construção de mapas participativos, o que tem contribuído para promoção da autonomia dos membros da comunidade no sentido de caracterizar e representar a territorialidade, isto é, sua realidade, suas lutas e suas esperanças.

Nesse sentido, é importante recordar que as comunidades quilombolas têm suas raízes na resistência anticolonial, pois surgiram como refúgios para escravos fugitivos durante o Brasil Colônia. No entanto, o conceito de “quilombo” transcende a simples fuga; é um símbolo de resistência contra a opressão e de luta pela preservação de uma identidade cultural rica e diversificada.

No caso de Ribeirão, a comunidade se originou a partir da fuga de escravos da fazenda dos Martins. Estes escravos encontraram refúgio em uma área próxima, onde puderam estabelecer seu modo de vida de forma autônoma. Hoje, Ribeirão é uma das quatro comunidades quilombolas certificadas em Brumadinho, e sua luta pela preservação do território continua.

O geógrafo Milton Santos, citado no capítulo, destaca que o território é uma junção inseparável entre o espaço material e o social, uma configuração que não pode ser compreendida sem levar em conta as relações sociais que a constituem.

Na perspectiva dos quilombolas, o território vai além de uma simples delimitação geográfica. Ele é o espaço onde se desenrolam suas vidas, onde sua história e cultura se enraízam. Já a territorialidade é vista como a apropriação simbólica e afetiva do espaço. Para os quilombolas de Ribeirão, o território não é apenas um pedaço de terra; é o lugar onde suas memórias e tradições se perpetuam, onde suas identidades se fortalecem frente às ameaças externas

A Cartografia Social em Ação: Ribeirão e a Luta pela Terra

A cartografia social na comunidade de Ribeirão teve início em junho de 2021. Desde então, os moradores têm tomado parte em oficinas de mapeamento participativo, nas quais têm a oportunidade de desenhar seus próprios mapas, refletindo suas percepções e experiências com o território.

A utilização da cartografia social durante as oficinas viabiliza o fortalecimento da afetividade entre os membros quilombolas. Nesses momentos, abrem-se espaços de narrativas e lembranças, ambiente de escuta, valorização e reconhecimento das experiências coletivas. O resgate da memória local não apenas enriquece a identidade do grupo, mas também o motiva a agir de forma engajada diante dos impasses e desafios que obstaculizam a delimitação de seus territórios e possíveis contestações advindas dessa dinâmica.

Ao mapear seu território, os quilombolas reivindicam seus direitos sobre a terra e se posicionam contra as tentativas de expropriação. Além disso, a criação dos mapas fortalece os laços comunitários, servindo como uma ferramenta de resistência. Os quilombolas destacam elementos do território que têm um valor especial para eles, como o rio Ribeirão, que dá nome à comunidade, mas que hoje se encontra poluído e inacessível devido à invasão de sitiantes, resultante da pressão da especulação imobiliária.

Juntam-se a tal cenário de conflito, a falta de infraestrutura básica no território e o enfrentamento de dificuldades econômicas que levam os membros da comunidade, muitas vezes, a vender partes de suas terras. Esse contexto gera conflitos internos e enfraquece a coesão comunitária. A cartografia social surge como uma estratégia para reforçar essa coesão e para fortalecer a luta pela titulação completa do território.

No entanto, a certificação do território como quilombola pela Fundação Cultural Palmares foi um passo importante, mas a titulação formal das terras ainda não havia sido concluída à época do estudo, o que deixa a comunidade em situação vulnerável.

Implicações da pesquisa

Apesquisa elucida a necessidade de se estabelecer uma articulação assertiva junto aos órgãos municipais e estaduais, os quais são responsáveis pela demarcação de terra das comunidades quilombolas. Esse diálogo é fundamental para dar visibilidade a nova configuração do espaço quilombola, retratada pela cartografia social e, sob a perspectiva dos sujeitos que ali residem, promovendo uma compreensão mais profunda das realidades e vulnerabilidades dessas comunidades.

A intenção é romper com a produção de mapas desenvolvidos pelo monopólio estatal, que considera somente os interesses econômicos e fundiários e, por isso, invisibiliza a possibilidade de uma representação territorial que reflita a história, a cultura e os direitos dos quilombolas.

Tal forma de atuação pelo poder público revela práticas que buscam descaracterizar os territórios tradicionais em favor da comercialização imobiliária e da exploração dos recursos naturais.

 

[i] Doutoranda em Ciências/Agronegócio e Desenvolvimento (FCE/UNESP), Bolsista da CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1950187892176976. Brasil. E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).