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A realidade da pobreza nas comunidades das Quebradeiras de Coco Babaçu

A pesquisa aborda a multidimensionalidade da pobreza enfrentada pelas quebradeiras de coco babaçu, mulheres que dependem do extrativismo do babaçu nos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará. Além da falta de renda, enfrentam a expropriação de terras, conflitos fundiários, dificuldades de acesso a recursos naturais e serviços públicos. A expansão do agronegócio na região ameaça a subsistência dessas mulheres, que têm resistido por meio de movimentos sociais e leis locais que garantem o acesso aos babaçuais.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 4 mar. 2024

Fernando Souza, Milian Martins, Guilherme Ribeiro, Ronaldo Lima e Nelson de Moraes, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Câmpus de Tupã, examinam a complexa realidade da pobreza vivida pelas quebradeiras de coco babaçu. Essas mulheres, majoritariamente de origem indígena e afrodescendente, dependem do extrativismo do babaçu para sobreviver, mas enfrentam problemas estruturais que as mantêm em situações de extrema pobreza.

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2020, no volume 6 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

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Apesar de adotar os compromissos internacionais de erradicação da pobreza, baseados na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil tem altas taxas de pobreza, especialmente nas áreas rurais. Classificado como um país de renda média-alta pelo Banco Mundial, o país apresenta grande disparidade de renda evidenciada por estatísticas oficiais.

De acordo com o IBGE, 48,9% da população rural vivia abaixo da linha de pobreza em 2018, o que equivale a 13,8 milhões de pessoas, sendo que 4,9 milhões viviam em extrema pobreza. As quebradeiras de coco babaçu, grupo de mulheres que praticam o extrativismo do babaçu em estados como Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará, está entre os mais vulneráveis.

A pobreza enfrentada por essas comunidades não é apenas financeira. Sofrem com a falta de acesso a recursos naturais e serviços públicos, como educação, saúde e saneamento básico. Tais privações exacerbam a situação de pobreza, que não pode ser vista apenas sob a ótica da insuficiência de renda. O conceito de pobreza multidimensional é, portanto, fundamental para entender a realidade das quebradeiras de coco babaçu.

O coco babaçu, oriundo das palmeiras que se espalham por vastas áreas do Norte e Nordeste do Brasil, é a base da subsistência das quebradeiras. Dele, elas extraem óleo, carvão e farinha, usados para alimentação, cosméticos, produtos de limpeza, além de servir como fonte de renda por meio da venda desses produtos. A palha e os talos da palmeira são também utilizados na construção de casas e na produção de artesanato.

Contudo, esse modo de vida está em risco devido à crescente pressão do agronegócio na região. A expansão das áreas de pastagem e monocultura, como a soja, tem devastado os babaçuais, reduzindo o acesso ao coco e, consequentemente, a renda das quebradeiras. Junto a isso, a concorrência de produtos substitutos, como o óleo de dendê, proveniente da Malásia, também pressiona os preços do óleo de babaçu, o que dificulta ainda mais a sustentabilidade da atividade extrativista.

As quebradeiras de coco babaçu vivem um dilema constante: por um lado, dependem dos babaçuais para a sobrevivência; por outro, enfrentam obstáculos legais e físicos para acessar essas áreas, muitas das quais estão em propriedades privadas. Mesmo quando conseguem acesso, frequentemente são obrigadas a repassar uma parte considerável de sua produção aos proprietários de terras ou a vender seus produtos a preços irrisórios.

Historicamente, a questão fundiária para as quebradeiras é marcada por conflitos. Grande parte dos babaçuais está em terras que foram privatizadas ao longo de décadas por fazendeiros e grileiros, inclusive com o apoio do Estado. Com isso, as mulheres enfrentam resistência por parte dos donos da terra, que tentam impedir o uso das palmeiras. As quebradeiras relatam casos em que foram atacadas por pistoleiros, tiveram suas colheitas destruídas ou que são forçadas a pagar pelo acesso ao coco, ficando à mercê dos interesses de grandes proprietários de terras.

Políticas públicas que favorecem o agronegócio, como a Lei Sarney de Terras, que incentivou a privatização de grandes áreas de terras públicas no Maranhão, beneficiando fazendeiros e desestimulando o uso tradicional das terras pelas quebradeiras contribuem para a piora da situação das extrativistas. O processo de expropriação e concentração fundiária tem ameaçado a existência de comunidades extrativistas, que dependem dos recursos naturais para sua subsistência.

Queimadas e desmatamento para expansão das áreas de pastagem e plantação de soja também têm contribuído para a destruição dos babaçuais. Segundo dados do MAPBIOMAS, entre 1985 e 2018, houve uma significativa redução nas áreas de babaçuais devido à conversão para pastagem e monoculturas mecanizadas. Isso impede a regeneração das palmeiras e, consequentemente, dificulta o extrativismo.

Os autores enfatizam que a pobreza enfrentada pelas quebradeiras de coco babaçu é multidimensional. Elas não são apenas financeiramente pobres; enfrentam também privações no acesso à educação, saúde, saneamento básico e recursos naturais. De acordo com estudos mencionados no texto, o analfabetismo entre as quebradeiras é alto, chegando a 56% em algumas regiões. Há também relatos de mulheres que sofrem de doenças relacionadas à atividade de quebra de coco, mas que enfrentam dificuldades para acessar cuidados médicos adequados.

A moradia também é precária. Embora algumas famílias vivam em casas de alvenaria, muitas ainda moram em casas de taipa sem escritura, o que as coloca em uma posição vulnerável em termos de posse de terra. O acesso a serviços básicos, como água encanada e saneamento, está vinculado à posse da terra, o que torna ainda mais difícil para as quebradeiras que não possuem propriedade acessar esses serviços.

Tais condições mostram que a pobreza das quebradeiras não pode ser resolvida apenas com transferência de renda. Embora programas como o Bolsa Família tenham ajudado a complementar a renda das extrativistas, não atacam a raiz dos problemas que perpetuam a pobreza. Sem acesso à terra e aos recursos naturais, as quebradeiras continuam presas em um ciclo de dependência e vulnerabilidade.

Diante de tal realidade, as quebradeiras de coco babaçu têm se organizado em movimentos sociais para lutar por seus direitos. Um dos principais marcos dessa luta foi a criação do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), o qual reúne mulheres dos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará.

Entre as conquistas desse movimento está a aprovação de leis municipais de “babaçu livre”, que garantem o acesso das mulheres aos babaçuais, mesmo quando localizados em propriedades privadas. Essas leis subvertem o direito de propriedade ao subordiná-lo ao interesse coletivo, reconhecendo a importância do babaçu para a subsistência e a cultura das mulheres. No entanto, o MIQCB ainda enfrenta resistência para aprovar uma lei nacional que garanta esses direitos em todo o território brasileiro.

Outra conquista importante do MIQCB é a inclusão das quebradeiras em programas governamentais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que garantem mercado para os produtos derivados do babaçu. Além disso, o movimento tem promovido a criação de cooperativas, como a Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco (COPPALJ), que busca melhorar a comercialização dos produtos do babaçu e fortalecer a economia local.

No entanto, apesar das conquistas obtidas por meio da organização social, o futuro das quebradeiras de coco babaçu continua incerto. A expansão do agronegócio e a falta de políticas públicas que reconheçam a complexidade da pobreza multidimensional que essas mulheres enfrentam são grandes desafios. Os pesquisadores argumentam que, para combater a pobreza nas comunidades tradicionais, é necessário adotar uma abordagem que vá além da simples transferência de renda. É fundamental que as políticas públicas levem em conta fatores como território, cultura e meio ambiente, reconhecendo a importância do modo de vida das comunidades e seu direito de acesso aos recursos naturais.

A luta das quebradeiras de coco babaçu é um exemplo emblemático da resistência de comunidades tradicionais no Brasil, que buscam não apenas sobreviver, mas manter sua cultura e dignidade diante das pressões econômicas e ambientais.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Quebradeiras de Coco Babaçu: luta e mobilização

Estudo da Universidade Federal do Tocantins (UFT) destaca a luta das quebradeiras de coco babaçu do Bico do Papagaio, Tocantins, por direitos econômicos, sociais e territoriais. Essas mulheres enfrentam a pressão do agronegócio enquanto defendem o acesso livre aos babaçuais, fundamentais para sua subsistência e preservação cultural. Lideradas por Dona Raimunda Gomes da Silva, organizaram-se em movimentos como o Babaçu Livre, alcançando importantes vitórias. No entanto, ainda enfrentam desafios significativos, como a privatização de terras e a contínua invisibilidade social.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 8 maio 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2020, no volume 6 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Milena Botelho Azevedo Lena e Francisco Gilson Rebouças Pôrto Júnior, Universidade Federal do Tocantins (UFT), descrevem o contexto histórico e social que deu origem ao movimento quebradeiras de coco babaçu (Figura 1b e 1c) no Bico do Papagaio, região de transição amazônica localizada no estado do Tocantins.

Esse grupo de mulheres extrativistas se tornou símbolo de resistência no Brasil, protagonizando uma longa batalha por direitos econômicos, sociais e territoriais. O movimento das quebradeiras reflete um enfrentamento histórico contra o agronegócio e a especulação imobiliária, que ameaçam os territórios e a cultura das comunidades tradicionais as quais dependem do babaçu para a sobrevivência.

O coco babaçu, fruto da palmeira nativa da Amazônia (Figura 1a), sempre desempenhou papel central na vida das extrativistas. Ele provê sustento às famílias e faz parte de um ciclo agroextrativista que envolve o uso integral do fruto: da casca se faz carvão, da amêndoa se extrai o óleo e o leite, e o mesocarpo é transformado em farinha nutritiva. No entanto, a destruição dos babaçuais, promovida principalmente por latifundiários, representa uma ameaça tanto à subsistência das quebradeiras como à continuidade de suas práticas culturais.

Os autores contextualizam historicamente o papel marginalizado da mulher na sociedade, ressaltando que, embora estejam presentes em diversas atividades laborais, elas continuam a sofrer com desvalorização e invisibilidade. Esse fenômeno se reflete de maneira particular nas quebradeiras de coco babaçu, cujo trabalho, apesar de ser essencial para a economia local e para a sustentabilidade ambiental, é sistematicamente desconsiderado pelas autoridades e pelos grandes interesses econômicos.

A luta dessas mulheres por melhores condições de trabalho e por reconhecimento social começou a ganhar visibilidade na década de 1980, quando figuras como Raimunda Gomes da Silva (Figura 1d), mais conhecida como Dona Raimunda, assumiram a liderança do movimento. Dona Raimunda, descrita pelos autores como uma figura de temperamento forte e habilidades diplomáticas, foi fundamental para a criação do Movimento Babaçu Livre, que tinha como objetivo garantir o acesso livre aos babaçuais e evitar a destruição das palmeiras.

Figura 1 – (a) Amêndoas do babaçu; (b) Quebradeira abrindo o coco com machado e porrete; (c) Grupo de quebradeiras indo trabalhar; (d) Raimunda Gomes da Silva

Fonte: Lena e Porto Júnior (2020).

O movimento nasceu em meio a um cenário de violência e disputas territoriais. Os babaçuais, passaram a ser alvo de grandes fazendeiros e grileiros interessados em expandir a fronteira agrícola. Essas terras, que há décadas eram utilizadas pelas comunidades agroextrativistas, começaram a ser privatizadas, e as quebradeiras se viram impedidas de acessar os babaçuais. O Movimento Babaçu Livre surgiu como uma resposta direta a esse processo de expropriação, lutando pela preservação dos babaçuais e pelo reconhecimento das quebradeiras como sujeitas de direitos.

A organização das extrativistas foi possível graças ao apoio de sindicatos, associações de trabalhadores rurais e da Igreja Católica, que tiveram papel fundamental na criação de redes de solidariedade e na articulação política do movimento. A participação das mulheres em sindicatos e em associações rurais marcou uma virada importante, pois antes disso os espaços de representação política eram dominados pelos homens.

Uma das maiores conquistas do movimento foi a aprovação da primeira Lei Municipal do Babaçu Livre, em 1997, no município de Lago do Junco, Maranhão. A legislação garantiu às quebradeiras o direito de acessar as áreas de babaçu, mesmo em propriedades privadas, e proibiu a derrubada das palmeiras, que eram frequentemente cortadas pelos fazendeiros para dar lugar à pecuária e à monocultura de soja. Essa vitória foi resultado de anos de mobilização e articulação política, mas, não encerra a luta das quebradeiras.

A comunicação popular empregada como instrumento de luta e resistência é de grande relevância para as extrativistas. A partir dos anos 1980, as quebradeiras começaram a se organizar em torno de eventos comunitários, reuniões nas igrejas e colheitas coletivas, criando espaços de partilha e de construção de estratégias. Um dos momentos mais marcantes desse processo foi a produção do documentário “Raimunda, a quebradeira”, dirigido por Marcelo Silva, em 2006, que trouxe à tona as histórias de resistência e os desafios enfrentados pelas quebradeiras.

O documentário foi uma ferramenta de denúncia e um meio de fortalecer a identidade e o protagonismo das mulheres extrativistas. O filme deu visibilidade internacional à causa das quebradeiras, sendo exibido em diversas regiões do Brasil e até em países como a França. Além disso, o relacionamento próximo entre o diretor e as quebradeiras possibilitou uma representação fiel das vivências dessas mulheres, algo essencial para a construção de narrativas que promovam a transformação social.

Outro aspecto relevante, é a luta das quebradeiras pela preservação da biodiversidade. Os pesquisadores mostram que a defesa dos babaçuais vai além da questão econômica, estando profundamente ligada à preservação dos saberes tradicionais e à manutenção da identidade cultural das comunidades. Para as quebradeiras, o babaçu não é apenas uma fonte de renda, mas um elo que as conecta à sua ancestralidade e ao território.

A destruição dos babaçuais, portanto, representa uma ameaça e simbólica, pois compromete a transmissão de conhecimentos tradicionais que são passados de geração em geração. Por isso, as gerações mais velhas têm grande importância na preservação desses saberes.

O estudo também aponta os desafios econômicos enfrentados pelas quebradeiras, que, apesar das conquistas alcançadas com a aprovação de legislações como a Lei do Babaçu Livre, continuam a sofrer com a precariedade do trabalho. O valor pago pelo quilo do coco babaçu é baixo e a cadeia de comercialização é dominada por intermediários que lucram com a exploração do trabalho das quebradeiras. O modelo econômico imposto pelo agronegócio torna difícil para essas mulheres competir em um mercado que privilegia grandes produtores.

Além disso, a privatização de terras continua a ser uma realidade alarmante, e muitos dos babaçuais estão cercados por propriedades privadas. A pesquisa destaca que, em algumas situações, as quebradeiras chegam a pagar para acessar as terras onde se encontram as palmeiras, situação que agrava ainda mais sua vulnerabilidade econômica.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Etnomatemática e identidade cultural na educação quilombola

Pesquisadores da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) exploram como a etnomatemática pode valorizar os saberes populares nas comunidades quilombolas, promovendo o empoderamento cultural dos estudantes. Discutem os desafios educacionais enfrentados, a tensão entre globalização e identidade local, e defendem uma pedagogia inclusiva que respeite e integre os conhecimentos tradicionais ao currículo acadêmico, fortalecendo a cidadania crítica.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 2 maio 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2020, no volume 5 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Cristiano Gomes de Oliveira e Márcio de Albuquerque Vianna, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), conduzem análise sobre a educação em comunidades quilombolas, destacando a necessidade de integrar os saberes populares ao ambiente escolar e ao currículo acadêmico. Enfatizam que essa integração pode transformar a experiência educativa, levando ao empoderamento dos estudantes e criando um ambiente mais inclusivo, onde a diversidade cultural é reconhecida como fundamental para o processo de ensino-aprendizagem.

A pesquisa destaca dois pontos principais: a valorização dos saberes tradicionais e o empoderamento dos sujeitos, com ênfase nos estudantes quilombolas. Os autores desafiam a visão tradicional de que apenas o conhecimento acadêmico, muitas vezes centrado em um viés ocidental, tem valor no ambiente escolar. Eles defendem que os saberes culturais trazidos pelos alunos devem ser integrados ao currículo, tanto para reconhecer a diversidade, como para promover uma educação mais significativa e relevante.

A sala de aula, nessa perspectiva, é vista como um espaço de intercâmbio de saberes, onde professores e alunos compartilham suas vivências e conhecimentos, que precisam ser respeitados. Entretanto, o cenário educacional brasileiro, especialmente nas escolas que atendem comunidades quilombolas, enfrenta problemas que dificultam a implementação de uma pedagogia inclusiva. Entre esses problemas estão a rigidez curricular, a escassa discussão sobre cultura popular na formação de professores e a tendência de muitos educadores a replicarem o modelo tradicional de ensino que experimentaram.

Nesse contexto, o conceito de etnomatemática surge como uma abordagem inovadora. A etnomatemática reconhece e valoriza as práticas culturais e os saberes de diferentes grupos sociais, propondo uma pedagogia que dialogue com os conhecimentos tradicionais e os insira no ensino formal. Isso permite que os professores promovam um aprendizado mais significativo, ajudando os alunos a reconhecer o valor de suas próprias culturas e identidades, rompendo com a invisibilidade e marginalização dessas comunidades no sistema educacional.

O processo de ensino, segundo os autores, deve ser repensado de forma crítica para superar a hierarquia entre o conhecimento acadêmico e o saber popular. A valorização dos saberes locais não deve ser um simples complemento ao currículo, mas parte essencial do processo educativo. Ao integrar esses saberes, os professores ajudam os alunos a desenvolver um sentimento de pertencimento e empoderamento, mostrando que suas culturas e experiências têm lugar na educação formal.

Os autores destacam ainda o papel do professor como mediador entre os saberes populares e acadêmicos. O docente deve incentivar o diálogo entre tais conhecimentos, criando um ambiente onde os alunos se sintam à vontade para compartilhar suas experiências. Essa abordagem exige uma mudança profunda nas práticas pedagógicas tradicionais, que tendem a priorizar a transmissão de conteúdos desconectados da realidade dos alunos.

Ao valorizar as experiências culturais e os saberes locais, os educadores contribuem para fortalecer a autoestima dos estudantes quilombolas. Esse empoderamento é essencial para que os alunos reconheçam seu potencial como agentes de mudança social. O reconhecimento de suas histórias e tradições tem um impacto significativo na forma como eles se veem no mundo, promovendo uma identidade mais fortalecida.

Muitos estudantes quilombolas, assim como aqueles de outras comunidades tradicionais, frequentemente não encontram significado nos conteúdos escolares, pois os currículos são elaborados de forma descontextualizada, ignorando suas realidades. Isso leva ao desinteresse e à falta de motivação. A etnomatemática propõe uma solução, sugerindo que os conteúdos sejam ensinados de forma que os alunos possam relacioná-los com suas vivências e tradições culturais. Esse processo torna o aprendizado mais envolvente e relevante.

Além disso, a pesquisa aborda os impactos da globalização na educação e na formação das identidades culturais locais. A globalização, que tende a homogeneizar culturas e eliminar diferenças, afeta diretamente as práticas educacionais, muitas vezes guiadas por padrões globais de ensino. Como resultado, práticas culturais locais, como as das comunidades quilombolas, são esquecidas ou marginalizadas. Esse cenário apresenta um desafio duplo: ao mesmo tempo em que as escolas precisam atender às demandas globais, elas têm a responsabilidade de promover o reconhecimento e a preservação das identidades culturais locais.

Diante disso, os autores sublinham que a educação quilombola deve ser um espaço de resistência cultural. A escola precisa ser um local onde os saberes tradicionais possam sobreviver e florescer, sendo reconhecidos como parte fundamental do processo educacional. Ao promover esse tipo de educação, os professores contribuem para a preservação das culturas locais e preparam os alunos para enfrentar os desafios do mundo globalizado de maneira crítica e consciente.

O ensino da matemática é destacado como exemplo de como os saberes populares podem ser integrados ao currículo escolar. Em vez de ensinar a matemática de forma abstrata, a etnomatemática sugere que os professores utilizem exemplos práticos e culturalmente relevantes, como jogos tradicionais, práticas artesanais ou o uso da matemática em atividades diárias, como a pesca e a agricultura. Essa abordagem não só torna o aprendizado mais interessante e relevante, mas também mostra aos alunos que a matemática é uma ferramenta aplicável à sua realidade.

A educação nas comunidades quilombolas deve ir além da simples transmissão de conteúdos acadêmicos. Ela deve preparar os alunos para serem cidadãos críticos e engajados em suas comunidades e na sociedade em geral. Isso envolve o desenvolvimento de habilidades acadêmicas e a formação de uma consciência crítica sobre questões sociais, políticas e econômicas. A etnomatemática, ao promover o diálogo entre saberes populares e acadêmicos, contribui para a formação de cidadãos mais conscientes.

Na visão dos autores, a educação é um ato político. Ela não deve ser neutra, mas comprometida com a transformação social. Os professores precisam adotar um papel ativo na luta por uma educação mais justa e inclusiva, que valorize a diversidade cultural e promova o empoderamento dos sujeitos. Isso implica reconhecer a importância dos saberes populares e questionar as estruturas de poder que perpetuam a marginalização de certos grupos no sistema educacional.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Segurança Alimentar: o papel da tradição e cultura na sustentabilidade

O estudo examina a interseção entre tradição alimentar e segurança alimentar no Brasil, abordando como a globalização tem promovido a substituição de alimentos tradicionais por produtos industrializados, impactando a diversidade cultural e nutricional. Discute-se a importância das práticas alimentares regionais e a necessidade de políticas públicas que promovam a sustentabilidade, a produção local e o acesso a alimentos saudáveis.

Por Fernando da Cruz Souza[i] | RedeCT, em Bauru-SP | 24 abr. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2019, no volume 3 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Dercílio Volpi Júnior, Francisco Augusto Alves Lopes, Vinicius Palácio, Gessuir Pigatto e Wagner Luiz Lourenzani, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Câmpus de Tupã, analisam como os hábitos alimentares das populações foram moldados ao longo da história e como essas tradições, em muitos casos, estão sendo substituídas por padrões globais de consumo que priorizam a praticidade e a produção em massa, em detrimento da diversidade e da qualidade.

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A segurança alimentar, definida pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) no Brasil, implica em garantir a todas as pessoas o direito de acesso a alimentos adequados, respeitando preferências culturais e regionais. No entanto, a globalização, o consumismo e o domínio das indústrias alimentícias têm levado à desterritorialização da alimentação – perda de vínculos culturais e sociais com a produção e consumo de alimentos locais – enquanto produtos industrializados se tornam predominantes nas dietas.

Esse processo é uma característica da globalização contemporânea. Empresas multinacionais padronizam hábitos alimentares, transformando a relação das pessoas com a comida. Tradições culinárias que definiam identidades culturais regionais estão sendo substituídas por alimentos processados e convenientes. No Brasil, isso é evidente em diversas regiões, nas quais alimentos industrializados competem com produtos tradicionais, alterando a paisagem alimentar de cidades e comunidades rurais.

Historicamente, os padrões alimentares evoluíram conforme contextos sociais, históricos, geográficos e econômicos de cada região. No Brasil, há uma rica herança cultural com influências indígenas, africanas, europeias, entre outras, moldando a diversidade alimentar que varia significativamente entre as regiões. Entretanto, essa diversidade está em risco, pois a globalização promove a uniformização das dietas e o aumento do consumo de alimentos processados, ameaçando as tradições culinárias.

A cultura alimentar é fundamental para as identidades regionais e nacionais brasileiras, variando de acordo com a geografia e história local. Na Amazônia, o consumo de peixes como o pirarucu, acompanhado por pratos à base de mandioca, é marcante. No Nordeste, pratos como acarajé e vatapá refletem a influência africana. No Sudeste, o pão de queijo e o feijão tropeiro são exemplos da culinária mineira, enquanto no Sul, o churrasco e o chimarrão refletem a história dos pampas e influências indígenas e europeias.

A evolução dos hábitos alimentares está ligada a necessidades de sobrevivência, padrões econômicos e práticas culturais. Nas sociedades pré-históricas, a alimentação dependia da caça e coleta. Com a domesticação de plantas e animais e o desenvolvimento da agricultura, surgiram sociedades mais estáveis, permitindo avanços civilizatórios. Civilizações antigas, como a romana e a egípcia, desenvolveram sistemas sofisticados de agricultura e comércio, influenciando a alimentação moderna.

Somente com a Revolução Industrial tornou-se possível a produção em massa de alimentos e a expansão dos mercados globais, processo acentuado pela globalização recente. Embora facilite o acesso a alimentos de diversas partes do mundo, a globalização também gera homogeneização dos hábitos alimentares. A comoditização dos alimentos, promovida por grandes corporações, trata-os como produtos genéricos, consumidos em qualquer lugar e momento, comprometendo a diversidade alimentar e ameaçando a segurança alimentar das populações mais vulneráveis.

No Brasil, a insegurança alimentar é uma realidade para milhões de pessoas. A pobreza, a fome e a desnutrição formam um ciclo difícil de romper, apesar de políticas públicas e esforços de organizações civis. Garantir o acesso a alimentos nutritivos e culturalmente adequados torna-se um desafio crescente no contexto da globalização, que cria desequilíbrios entre produção e consumo.

A globalização também afeta a sustentabilidade dos sistemas alimentares. A produção em larga escala de alimentos processados envolve o uso excessivo de recursos naturais e contribui para o desmatamento e destruição de ecossistemas essenciais, como as florestas tropicais. Além disso, o uso intensivo de pesticidas e fertilizantes tem efeitos prejudiciais sobre o meio ambiente.

Os pesquisadores ressaltam que há uma relação direta entre alimentação e saúde. O aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, ricos em gorduras, açúcares e sódio, leva ao crescimento de obesidade, diabetes e outras doenças crônicas. No Brasil, esses alimentos são frequentemente mais baratos e acessíveis do que os frescos, criando desigualdade nas escolhas alimentares das populações mais pobres.

Neste cenário, preservar as tradições alimentares e combater a homogeneização são essenciais para garantir a segurança alimentar e a saúde. É necessário fortalecer políticas públicas que promovam a agricultura familiar e o desenvolvimento local, valorizando produtos regionais e garantindo acesso a alimentos saudáveis e nutritivos. Programas de incentivo à produção local, como feiras livres e cooperativas de agricultores, podem manter as tradições culinárias vivas e assegurar a sustentabilidade dos sistemas alimentares.

Conjuntamente, é fundamental educar a população sobre a importância de uma alimentação saudável e sustentável. Conscientizar sobre a origem dos alimentos e seus impactos na saúde e no meio ambiente é essencial para a preservação da cultura alimentar. Campanhas de educação alimentar podem sensibilizar as pessoas para valorizar alimentos frescos, naturais e regionais.

 

[i] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).