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Evolução histórica, direito e política pública territorial quilombola no Brasil

Pesquisadores de São Paulo e Tocantins traçam a transformação histórica, os desafios legais e as políticas públicas relacionadas aos territórios quilombolas no Brasil. Abordam a luta contínua das comunidades quilombolas pela titulação de suas terras, destacam as conquistas e as dificuldades na implementação dos direitos territoriais garantidos pela Constituição de 1988 e discutem o papel das organizações públicas e da sociedade civil na proteção desses territórios. Sublinham também a importância das ações afirmativas para combater as desigualdades raciais e preservar a identidade cultural quilombola.

Por Jardilene Gualberto P. Fôlha[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Bauru-SP | 28 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2018, no volume 2 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

Os pesquisadores[iii] partem de uma análise interdisciplinar, que combina história, antropologia e sociologia, para sintetizar os direitos territoriais estabelecidos por legislações vigentes e analisar as condições organizacionais e as políticas públicas de ação afirmativa voltadas aos quilombolas.

Contextualização

Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), as mais de 6.000 comunidades quilombolas no Brasil enfrentam um desafio contínuo para garantir direitos territoriais, reconhecidos na legislação, mas frequentemente negligenciados na prática.

Desde o período colonial, os quilombos surgiram como espaços de resistência à escravidão. Esses territórios, muitas vezes localizados em áreas isoladas e de difícil acesso, tornaram-se refúgios para africanos escravizados que fugiam das fazendas e minas. Ao longo dos séculos, esses espaços proporcionaram abrigo e preservaram culturas, tradições e modos de vida que resistiram à opressão.

Com a abolição da escravatura em 1888, as comunidades quilombolas continuaram a enfrentar desafios significativos, particularmente no que diz respeito ao acesso e à posse da terra. Durante grande parte do século XX, as comunidades foram amplamente ignoradas pelo Estado, sem reconhecimento formal de seus direitos territoriais. Somente com a Constituição de 1988, o Brasil passa a reconhecer oficialmente tais direitos, marcando um avanço significativo na luta pela justiça social.

Legitimação territorial e conflitos fundiários

Os autores evidenciam que o território quilombola, além do conceito de terra, engloba identidades coletivas, saberes, culturas, hábitos, relações de parentesco, símbolos, costumes, representações e tradições que definem o modo de vida das comunidades que nele habitam.

A territorialidade quilombola deve ser entendida como uma relação complexa e multifacetada entre sociedade, espaço e tempo. O território é mais do que apenas uma porção de terra; ele representa a história, a cultura e a identidade das comunidades que o ocupam. Portanto, a perda de território significa muito mais do que a perda de um espaço físico; é uma ameaça direta à continuidade cultural e social dessas comunidades.

Diante disso, a Constituição Federal de 1988 foi um marco incontestável na história dos direitos quilombolas no Brasil, pois o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) reconhece o direito à propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas, determinando que o Estado emitisse os títulos de propriedade respectivos. Este avanço constitucional abriu caminho para que as comunidades quilombolas pudessem reivindicar formalmente seus territórios, algo que até então era quase impossível.

Além da Constituição, várias outras legislações reforçam os direitos quilombolas. O Decreto nº 4.887, de 2003, é particularmente importante, pois introduz o critério de autoidentificação para o reconhecimento dos remanescentes de quilombos. No decreto, atribui-se ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a responsabilidade de identificar, reconhecer, delimitar, demarcar e titular os territórios quilombolas. Ressalta-se que o reconhecimento legal é fundamental para a proteção dos territórios quilombolas contra invasões e conflitos fundiários.

Outro marco importante é a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2002 e promulgada em 2004. Esta convenção reconhece os direitos de propriedade e posse sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas e tribais, incluindo os quilombolas, e exige que os governos adotem medidas para salvaguardar tais direitos.

No entanto, apesar desse arcabouço legal robusto, a implementação dos direitos territoriais quilombolas enfrenta grandes desafios. A morosidade na demarcação e titulação das terras é um dos principais problemas. Portanto, a prática muitas vezes fica aquém das expectativas, devido às limitações administrativas, orçamentárias e políticas, tal que o processo de titulação se torna longo e complexo. Muitas comunidades esperam anos, ou até décadas, para obter títulos de propriedade.

Além disso, a defesa do território quilombola é marcada por conflitos constantes, especialmente com grileiros, mineradoras, empresas agropecuárias e imobiliárias. Os interesses de tais atores frequentemente se sobrepõem aos direitos das comunidades, resultando em confrontos que colocam em risco a segurança e a sobrevivência das comunidades.

Em muitos casos, os conflitos fundiários são exacerbados pela falta de demarcação e titulação das terras. Sem os documentos legais, as comunidades quilombolas estão vulneráveis a invasões e despejos forçados. Junto a isso, a ausência de uma regulamentação clara e eficaz para a proteção dos territórios quilombolas permite que interesses econômicos poderosos pressionem o Estado a retardar ou até impedir a titulação das terras.

Atores relevantes na questão fundiária quilombola

As políticas públicas territoriais para quilombolas envolvem diversas organizações, como o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a Fundação Cultural Palmares (FCP) e o INCRA. Em conjunto, estes atores têm a responsabilidade de implementar as políticas voltadas para a regularização dos territórios quilombolas, mas enfrentam obstáculos significativos, especialmente após as mudanças políticas e administrativas verificadas à época da pesquisa.

O MDA, criado para promover a reforma agrária e apoiar o desenvolvimento rural, desempenhou papel importante na implementação das políticas territoriais quilombolas até sua extinção em 2016 – atualmente foi recriado sob o nome Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. Em 2016, as funções do ministério haviam sido transferidas para a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário, dentro da Casa Civil da Presidência da República, o que obstaculizou ainda mais a execução das políticas devido à falta de um órgão específico e dedicado à causa quilombola.

A Fundação Cultural Palmares, por sua vez, é vinculada ao Ministério da Cultura, sendo responsável pela promoção e preservação da cultura afro-brasileira. Apesar de seu papel ser fundamental para o reconhecimento da identidade quilombola, devido às restrições orçamentárias e à falta de autonomia administrativa, a Fundação enfrentou desafios em garantir a implementação efetiva das políticas culturais e territoriais até 2022.

Demarcar e titular os territórios quilombolas é o papel do INCRA. Contudo, o processo conduzido pelo INCRA é frequentemente lento e burocrático, com muitas etapas que podem levar anos para serem concluídas. A falta de recursos e pessoal especializado também dificultam ainda mais a capacidade do órgão de cumprir suas funções de forma eficaz.

Já a sociedade civil organizada tem desempenhado um papel fundamental na luta pelos direitos quilombolas. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), criada em 1996, é uma das principais organizações representativas das comunidades quilombolas no Brasil. A CONAQ mobiliza as comunidades em todo o país, promovendo debates e ações que buscam garantir a efetivação dos direitos quilombolas.

As coordenações estaduais e as associações comunitárias também trabalham para fortalecer a pluralidade étnica do Brasil, oferecendo assessoria e apoio às comunidades em suas demandas junto aos órgãos públicos, além de promoverem o protagonismo das mulheres e dos jovens quilombolas, incentivando a participação ativa na luta por direitos.

Além de atuar na defesa dos direitos territoriais, as associações comunitárias buscam promover o desenvolvimento sustentável das comunidades quilombolas por meio do desenvolvimento de projetos que visam melhorar a qualidade de vida nas comunidades. Focam em preservar ao mesmo tempo as tradições culturais e modos de vida e, notavelmente, são responsáveis por solicitar a emissão da Certidão de Autorreconhecimento pela Fundação Cultural Palmares, um passo crucial no processo de titulação das terras.

Ações afirmativas

No Brasil, as ações afirmativas são fundamentais para corrigir as desigualdades raciais e garantir a inclusão social de grupos historicamente marginalizados, como os quilombolas. Políticas afirmativas visam promover a igualdade de oportunidades e combater o preconceito e a discriminação racial. Entretanto, a implementação das ações afirmativas enfrenta resistência em vários setores da sociedade, que muitas vezes veem tais políticas como privilégios indevidos.

De acordo com a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), as ações afirmativas se sustentam sobre o conceito de equidade, expresso na Constituição, que impõe à sociedade o tratamento igualitário entre todos. Por isso, as políticas afirmativas não são benefícios, mas uma necessidade diante das injustiças históricas que persistem no país. Para compreender a nessecidade dessas, é preciso considerar o contexto histórico de desigualdade e discriminação racial no Brasil.

O estudo sinaliza que a luta pelos direitos territoriais quilombolas é uma questão de justiça social e de reconhecimento histórico. Embora o Brasil tenha avançado significativamente no reconhecimento desses direitos desde a Constituição de 1988, a implementação ainda está longe de ser ideal. A morosidade no processo de demarcação e titulação das terras, juntamente com a falta de recursos e vontade política, são os principais obstáculos que impedem a plena realização dos direitos quilombolas.

Com isso, o Estado brasileiro precisa fortalecer a capacidade administrativa e orçamentária para implementar as políticas de maneira eficaz. Também é fundamental que as organizações da sociedade civil continuem a mobilizar e defender os direitos das comunidades quilombolas, garantindo que as vozes quilombolas sejam ouvidas e seus direitos respeitados.

Pode-se dizer que nem todas as colunas do tripé – território, organizações e políticas públicas – oferecem a sustentabilidade necessária para o desenvolvimento das comunidades quilombolas, que têm se esforçado para cumprir os direitos garantidos por lei. Em linhas gerais, a discussão sobre os direitos territoriais dos quilombolas brasileiros não traz novidades. Historicamente, o povo quilombola foi constituído na ilegitimidade de seus direitos, desde que, pela primeira vez, teve o direito de permanecer em seus territórios de origem usurpado, sendo deixado em condições sub-humanas.

 

[i] Doutoranda em Educação na Amazônia - PGEDA/UFT. Mestre em Educação - PPGE/UFT. Professora do Município de Palmas (SEMED/Palmas). Pesquisadora dos grupos de pesquisas: CNPQ Gepce/UFT-TO e GEDGS/UNESP-SP. Membro da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Povos Originários e Comunidades Tradicionais (RedeCT). Membro da Comunidade de Remanescente Quilombola Lajeado (TO). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

[iii] Bruno R. Carvalho Pires, da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS); Celenita G. Pereira Bernieri, da Prefeitura Municipal de Dianópolis; Jardilene G. Pereira Fôlha, da Prefeitura Municipal de Palmas; Nelson Russo de Moraes, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP – Câmpus de Tupã); e Francisco G. Rebouças Porto Júnior, da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

Comunidade Quilombola de Lajeado, Dianópolis-TO: construção histórica e saberes ancestrais

A construção histórica dos saberes ancestrais, da identidade, das práticas cotidianas e da luta pela preservação do território da Comunidade Quilombola de Lajeado, localizada em Dianópolis, Tocantins, foi tema de estudo de pesquisadoras do Toocantins. O estudo revelou que a comunidade mantém suas tradições por meio de práticas como festas religiosas, danças, músicas e culinária, transmitidas de geração em geração e que, diante de desafios como a perda de terras e conflitos com fazendeiros, a comunidade se organizou politicamente para reivindicar direitos e proteger o território.

Por Jardilene Gualberto P. Fôlha[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Bauru-SP | 28 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2018, no volume 1 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

A pesquisa é estruturada em três eixos principais. O primeiro examina conceitos identitários, como comunidades tradicionais, quilombos, comunidades quilombolas e territorialidade. O segundo eixo narra o histórico da Comunidade Quilombola de Lajeado, desde sua origem e a influência do ciclo do ouro na região norte de Goiás até a questão da territorialidade, a descendência das famílias de Leandro Bispo e Paulinha Furtado, e a organização política da Associação da Comunidade.

O terceiro eixo foca nas práticas cotidianas e nos saberes culturais da comunidade, evidenciados em suas relações de reciprocidade, festas religiosas e culturais. Essas práticas incluem a Festa de Reis, o Terço de São José, as festas juninas, além de manifestações culturais como música, dança, culinária e medicina popular. Esses elementos refletem a identidade cultural e a relação com a biodiversidade local, fundamentais para a sobrevivência e bem-estar dos quilombolas.

A Comunidade Quilombola de Lajeado

De acordo com Celenita Bernieri, da Prefeitura Municipal de Dianópolis, e Jardilene Fôlha, da Prefeitura Municipal de Palmas, a Comunidade Quilombola de Lajeado e composta por 35 famílias, das quais 10 ainda residem no território. Situada no município de Dianópolis, a 327 km de Palmas, capital do Tocantins, a comunidade está cercada por desafios ambientais, como a escassez de água, e por conflitos territoriais com fazendeiros e grileiros.

O vínculo da comunidade com seu território é profundo e histórico. Conhecida como "Terra dos Pretos", Lajeado é uma área onde a identidade quilombola foi construída e mantida ao longo de gerações. Esse território é tanto um espaço físico, como um símbolo da resistência cultural e social do grupo, que tem suas raízes no século XIX, quando Leandro Bispo e Paulina Furtado adquiriram as primeiras terras na região.

Para entender a relevância da Comunidade Quilombola de Lajeado, é fundamental compreender os conceitos de quilombo e comunidade tradicional. As comunidades tradicionais, de acordo com o Decreto 6.040/2007, são grupos culturalmente diferenciados que mantêm formas próprias de organização social, utilizam recursos naturais para sua reprodução cultural e social, e transmitem conhecimentos e práticas de geração em geração.

O conceito de quilombo, por sua vez, evoluiu ao longo do tempo. Originalmente, quilombos eram refúgios formados por escravos fugitivos. No entanto, a definição contemporânea de quilombo, reconhecida pela Constituição Brasileira de 1988, inclui comunidades que, apesar de não terem sido formadas diretamente por escravos fugitivos, mantêm laços ancestrais e culturais com essa história de resistência. A territorialidade, ou seja, a relação simbólica e material que esses grupos têm com a terra, é um elemento crucial para sua identidade.

A Comunidade de Lajeado é um exemplo de ambos os conceitos. Sua história está intimamente ligada à história da exploração do ouro e à criação de gado no norte de Goiás, região que hoje corresponde ao estado do Tocantins. No início do século XIX, com a crise da mineração de ouro, muitos negros que trabalhavam nas minas fugiram ou formaram quilombos.

O território da comunidade é fragmentado, resultado de décadas de cercamentos de terras e conflitos com fazendeiros. Essa fragmentação não é apenas física, mas social, pois muitas famílias quilombolas foram forçadas a deixar suas terras em busca de trabalho e educação em outras regiões. Apesar disso, a comunidade mantém um forte vínculo com seu território ancestral, um lugar marcado pela presença de mangueiras centenárias e antigas minas de ouro, que são símbolos da ocupação e resistência histórica dos quilombolas e da adaptação às adversidades.

Ao longo dos séculos, as terras de Lajeado foram divididas entre os descendentes de Leandro Bispo e Paulinha Furtado, que as adquiriram ainda no século XIX. No entanto, grande parte dessas terras foi perdida para terceiros, o que deixou a comunidade com um território limitado para o cultivo e a sobrevivência. Essa perda territorial é um dos principais desafios enfrentados pela comunidade, que luta para manter sua identidade e modo de vida em um cenário de constante pressão externa.

Práticas culturais e saberes ancestrais

A riqueza cultural da Comunidade Quilombola de Lajeado se manifesta em suas práticas cotidianas e saberes ancestrais, os quais são fundamentais para a manutenção da identidade quilombola e incluem festas religiosas, danças, músicas, culinária e medicina popular.

Uma celebração tradicional que ocorre no início de janeiro é a Festa de Reis. Durante a festa, os membros da comunidade expressam sua devoção através de rituais que incluem cantos, danças e a preparação coletiva de alimentos. Essa celebração, mais do que um evento religioso; é um momento de fortalecimento dos laços comunitários e de reafirmação da identidade cultural.

Outra festa importante é o Terço de São José, comemorado em 19 de março, que reúne fiéis de toda a região para rezar e celebrar em comunidade. A Festa Junina, tradicionalmente celebrada por cada família em sua própria casa, também foi resgatada pela juventude da comunidade em 2017, consolidando-se como um evento coletivo que reforça a identidade quilombola.

Músicas e danças tradicionais são também expressões da resistência cultural da comunidade. A catira, dança que combina a batida dos pés e das mãos com o canto e o toque de viola e pandeiros, tem suas letras criadas, muitas vezes, pelos próprios moradores e refletem a história e as experiências da comunidade. A sussia, por seu turno, uma dança de origem quilombola transmitida de geração em geração, é outro símbolo cultural da comunidade. As músicas e danças são apresentadas durante festas religiosas e eventos culturais como uma forma de manter viva a tradição e de transmitir valores culturais às novas gerações.

Outro aspecto importante da identidade cultural de Lajeado é a culinária. Baseada em ingredientes cultivados localmente, como arroz, milho, feijão, pequi e buriti, a culinária quilombola reflete a relação da comunidade com a terra e seus recursos naturais. Pratos tradicionais, como o bolo quebrador e o bolo de arroz, são preparados seguindo receitas transmitidas pelos antepassados. Além de uma prática cotidiana, a culinária é uma forma de preservar e celebrar a cultura quilombola. Durante as festas, os alimentos são preparados coletivamente, reforçando os laços comunitários e a importância da partilha.

Ao utilizar plantas e ervas medicinais para tratar doenças e manter a saúde, a medicina popular na comunidade também se fortalece. As matriarcas e patriarcas desempenham papel crucial na transmissão desses tipos de saberes, ensinando os mais jovens sobre o uso de plantas como o buriti e o pequi para fins medicinais.

Preservação territorial e resistência cultural

Desde 2011, a comunidade se organizou politicamente para enfrentar as ameaças de invasão e perda de terras. A criação da Associação dos Agricultores e Agricultoras Familiares da Comunidade Quilombola Lajeado foi um marco importante nesse processo, permitindo à comunidade reivindicar direitos e buscar apoio de organizações externas.

A organização política trouxe oportunidades para a comunidade, como o fortalecimento das práticas culturais e a busca por reconhecimento legal. Em 2011, a comunidade obteve a certificação de autodefinição como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares, e em 2014, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) iniciou a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação Antropológico da comunidade.

A luta pela preservação territorial é uma luta pela preservação da identidade cultural. A comunidade de Lajeado está ciente de que, para garantir um futuro para as próximas gerações, é essencial manter viva a memória coletiva e as tradições culturais. As matriarcas e patriarcas desempenham papel fundamental nesse processo, transmitindo saberes e valores culturais às novas gerações.

Os resultados da pesquisa indicam que a comunidade se revela como um corpo social fortalecido pela reciprocidade entre seus membros. Apesar das dificuldades enfrentadas, a comunidade tem resistido culturalmente, mantendo viva sua identidade e preservando os vínculos com seus territórios ancestrais.

 

[i] Doutoranda em Educação na Amazônia - PGEDA/UFT. Mestre em Educação - PPGE/UFT. Professora do Município de Palmas (SEMED/Palmas). Pesquisadora dos grupos de pesquisas: CNPQ Gepce/UFT-TO e GEDGS/UNESP-SP. Membro da Rede Internacional de Pesquisadores sobre Povos Originários e Comunidades Tradicionais (RedeCT). Membro da Comunidade de Remanescente Quilombola Lajeado (TO). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Povos indígenas no Brasil: transformações históricas dos direitos e das políticas públicas

Membros da RedeCT na Unesp - Câmpus de Tupã abordam a trajetória histórica dos direitos e políticas públicas voltadas aos povos indígenas no Brasil. Apesar dos avanços legais, especialmente com a Constituição de 1988, os indígenas ainda lutam contra a expropriação territorial e a assimilação forçada. O texto sublinha a importância da justiça social e da inclusão em políticas que respeitem e protejam a diversidade cultural e territorial indígena.

Por Fábio Andrade Dias[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Tupã - SP | 29 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2019, no volume 3 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

A pesquisa desenvolvida pelo Dr. Nelson Russo de Moraes e pelos pesquisadores Ariane Taísa de Lima e João Augusto Rodrigues, vinculados à Unesp – Câmpus de Tupã, oferece uma análise da transformação dos direitos e das políticas públicas voltadas aos povos indígenas no Brasil. Traçam uma trajetória histórica desde a chegada dos portugueses até os dias atuais, refletindo sobre a resistência, expropriação territorial e tentativas de assimilação cultural dos povos indígenas.

Desde a chegada dos portugueses, a população indígena no Brasil passou por uma drástica redução. Estima-se que havia milhões de indígenas à época, mas o censo de 2010 revelou uma queda para cerca de 900.000 pessoas. Tal diminuição é atribuída a décadas de políticas inadequadas que não garantiram proteção efetiva dos direitos territoriais e culturais indígenas.

Os povos indígenas foram confrontados com uma realidade de colonização violenta. Nos primeiros anos, as relações entre indígenas e colonizadores foram relativamente pacíficas, mas rapidamente se deterioraram à medida que os colonos europeus buscaram explorar os recursos naturais e expandir suas terras. Durante o período colonial, a Igreja Católica desempenhou papel crucial com a catequização como ferramenta para a assimilação cultural dos indígenas. A Bula Ventas Ipsa, de 1537, reconheceu os indígenas como seres humanos com alma, justificando sua conversão ao cristianismo como um meio de “civilização”.

Com a independência do Brasil em 1822, as políticas indigenistas continuaram a focar na integração dos indígenas à sociedade nacional. A Constituição de 1824, a primeira do Brasil, foi omissa quanto aos direitos dos povos indígenas, tratando-os de maneira genérica como cidadãos brasileiros. No entanto, a realidade era a de que as políticas públicas dessa época visavam, sobretudo, a expropriação de terras para o desenvolvimento econômico do país, sem considerar a preservação das culturas e tradições indígenas. Durante o Império, a legislação e as políticas públicas frequentemente negligenciavam os direitos territoriais e culturais dos indígenas, priorizando a ocupação e exploração dos recursos naturais em suas terras.

Com a proclamação da República em 1889, novas instituições foram criadas para lidar com a questão indígena, destacando-se o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), fundado em 1910. Este órgão tinha a missão de proteger os indígenas, mas na prática, muitas vezes atuou de maneira paternalista, considerando-os como relativamente incapazes e sob tutela do Estado. O SPI foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 1967, durante o regime militar, com o objetivo de corrigir as deficiências do SPI, mas enfrentou críticas similares por reproduzir práticas coloniais de tutela e controle sobre os povos indígenas. A FUNAI, mesmo sendo um avanço em termos de institucionalização, ainda carregava consigo a visão de que os indígenas deveriam ser integrados à sociedade nacional dominante, muitas vezes em detrimento de suas culturas e territórios.

A promulgação da Constituição de 1988 transformou os indígenas em sujeitos de direito e representou um marco na luta pelos direitos indígenas no Brasil. Pela primeira vez, a Constituição reconheceu explicitamente a diversidade cultural dos povos indígenas e assegurou seus direitos territoriais, garantindo-lhes a posse permanente de suas terras e o usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas existentes. Este avanço legal foi resultado de uma intensa mobilização dos movimentos indígenas e de seus aliados na sociedade civil, a qual ganhou força na década de 1970.

A Constituição de 1988 também incorporou a noção de que os indígenas têm o direito de manter suas próprias tradições e culturas, sem serem forçados à assimilação. No entanto, a implementação desses direitos tem enfrentado desafios contínuos, especialmente em face de interesses econômicos poderosos, como o agronegócio e a mineração, que frequentemente entram em conflito com os direitos territoriais indígenas.

A demarcação de terras, essencial para a preservação cultural e física dos povos indígenas, ainda é um processo marcado por conflitos e lentidão burocrática. Além disso, as políticas públicas muitas vezes não conseguem alcançar todas as comunidades indígenas, deixando muitos sem a proteção e o apoio de que necessitam. Portanto, embora a Constituição de 1988 tenha representado um passo importante para o reconhecimento dos direitos indígenas, ainda há um longo caminho a percorrer para que esses direitos sejam plenamente respeitados na prática. A luta dos povos indígenas no Brasil, continua sendo uma questão central para a justiça social e a preservação da diversidade cultural no país. É fundamental que o Estado e as instituições se empenhem em respeitar e valorizar a diversidade cultural dos povos indígenas, garantindo a preservação de suas tradições e direitos em um contexto de dignidade e respeito.

 

[i] Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Agronegócio e Desenvolvimento da Faculdade de Ciência e Engenharia (FCE), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp – Câmpus de Tupã). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Criação artística de Isaias Miliano: o patrimônio roraimense em destaque

Pesquisadoras de Roraima investigam a obra do artista indígena Isaias Miliano, cuja arte está profundamente enraizada nas tradições culturais de Roraima, refletindo e ressignificando a identidade da região. Por meio de técnicas como o entalhe em madeira e a utilização de grafismos rupestres, Miliano combina elementos tradicionais e contemporâneos – uma expressão artística única. Além de preservar o patrimônio cultural roraimense, sua obra promove um diálogo sobre a importância do hibridismo cultural e da diversidade na arte contemporânea, sobretudo na perspectiva do sujeito indígena.

Por Fábio Andrade Dias[i] e Fernando da Cruz Souza[ii] | RedeCT, em Tupã - SP | 29 ago. 2024

Os resultados da pesquisa foram publicados em 2021, no volume 8 do livro Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária. A série é organizada pela RedeCT e publicada –– em acesso aberto –– sob o selo da Editora da Universidade Federal de Roraima e da Editora Fi.

As professoras Acsa da Silva Ribeiro e Leila Adriana Baptaglin, do Sesc-Roraima e da Universidade Federal de Roraima (UFRR), respectivamente, desenvolveram pesquisa sobre a trajetória e a produção artística de Isaias Miliano, um renomado artista indígena de Roraima. Baseando-se tanto em uma revisão teórica como em pesquisa de campo, com entrevistas com o artista e a com a análise de uma de suas obras mais significativas, focaram em como a obra do artista se entrelaça com a identidade cultural da região. Com isso, oferecem um olhar sobre o processo criativo de Miliano e a relevância de seu trabalho para a preservação e valorização do patrimônio cultural roraimense.

Isaias Miliano (Figura 1) nasceu na Serra do Uiramutã, região situada na fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela. Filho de pai da etnia Macuxi e de mãe da etnia Patamona, Miliano ele se identifica principalmente como indígena Patamona e carrega em sua arte forte influência das raízes indígenas. Com a vida marcada por constante transição entre diferentes culturas e territórios, tendo residido em Porto Velho (RO), São Paulo (SP) e, atualmente, em Boa Vista (RR), sua arte reflete a pluralidade cultural por meio da combinação de elementos que representam o ambiente urbano e as tradições de seus ancestrais. O trânsito entre tais fronteiras se dá devido à realização de exposições em diversos locais, oportunidade em que troca experiências com outros artistas.

Figura 1 - Artista em seu processo de criação

Fonte: Ribeiro; Baptaglin (2021).

Miliano é um artista versátil, conhecido amplamente por seus entalhes em madeira, utilização de materiais reciclados ou encontrados nas ruas. Sua escolha de trabalhar com esses materiais é significativa por razões ecológicas e por ser um meio de se conectar ao passado e ao presente. Ao usar o que está disponível no ambiente urbano para criar obras que remetem às suas origens indígenas e ao patrimônio cultural da região Norte, especialmente de Roraima, faz uma ponte entre diferentes mundos e tempos, refletindo a complexidade da identidade cultural roraimense.

Para refletir sobre a arte de Miliano, as pesquisadoras utilizam conceitos como a subjetividade e a criatividade, elementos centrais no processo artístico do indígena. De acordo com Fayga Ostrower, uma das autoras citadas na pesquisa, todos os seres humanos possuem a capacidade criativa, que se manifesta de várias formas simbólicas, seja através da linguagem verbal, escrita ou visual. A arte, nesse sentido, é uma linguagem que revela a intenção do artista e sua singularidade, refletindo ao mesmo tempo experiências pessoais e coletivas. Miliano, portanto, funde sua visão individual e da cultura roraimense, resultando em criações que expressam tanto suas vivências pessoais quanto o contexto social em que está inserido.

Tal visão é complementada por Stuart Hall, outro teórico mencionado na pesquisa, cuja compreensão é a de que toda produção cultural é uma resposta ou interpretação de uma pessoa em determinada cultura. A arte de Miliano, neste caso, responde às complexidades da identidade roraimense, abordando temas como a memória, o hibridismo cultural e a relação entre o passado e o presente.

O conceito de hibridismo cultural é particularmente relevante para entender a arte de Miliano. Este conceito já foi visto de maneira negativa no passado e passou a ser valorizado como uma forma de celebrar a diversidade e a multiplicidade cultural. Na obra do artista estudado, o hibridismo fica evidente na incorporação de elementos de diferentes culturas, criando uma fusão única que representa a diversidade cultural de Roraima. O artista frequentemente utiliza mandalas em suas criações, por exemplo, um símbolo que não é originário da cultura indígena, mas que ele ressignifica em nas obras.

A abordagem híbrida é um reflexo da própria identidade cultural de Roraima, marcada pela confluência de diferentes povos e culturas. A arte de Miliano, assim, também transforma tal identidade, ao incorporar novas influências e ressignificar elementos tradicionais. Isso faz de sua obra uma expressão contemporânea da cultura roraimense, ao mesmo tempo em que preserva e valoriza as raízes indígenas.

Análise da Obra “Sol”

As autoras fornecem uma análise detalhada de uma das obras mais significativas de Miliano: a Mandala intitulada “Sol” (Figura 2). A obra faz parte da série “Elementos”, que explora temas relacionados aos grafismos rupestres encontrados em Roraima. A mandala “Sol” é um exemplo claro de como Miliano ressignifica elementos culturais antigos para criar novas formas de expressão artística.

Figura 2 - Mandala "Sol"

Fonte: Ribeiro; Baptaglin (2021).

Feita em madeira cedro, com entalhes em baixo relevo, a obra apresenta um acabamento que remete à cor dos desenhos rupestres. A escolha do Sol como tema central reflete a conexão de Miliano com a herança indígena, particularmente com a etnia Patamona, cujo nome significa “Herdeiros do Sol”. A Mandala “Sol” combina elementos tribais e formas abstratas, sendo ao mesmo tempo rica em simbolismo e esteticamente sofisticada.

A Mandala é uma estrutura central ao redor da qual o artista organiza outros elementos simbólicos, como figuras humanas estilizadas e desenhos indígenas. Essa combinação de elementos reflete o hibridismo cultural que caracteriza a identidade roraimense e destaca a habilidade de Miliano em ressignificar símbolos tradicionais em um contexto contemporâneo.

Segundo a conclusão das autoras, a obra de Isaias Miliano ilumina aspectos importantes da identidade cultural de Roraima e abre novos caminhos para a discussão sobre o papel da arte na preservação e valorização do patrimônio cultural. A Mandala “Sol” e outras obras de Miliano exemplificam como a arte pode servir como um meio poderoso de comunicação e expressão, oferecendo insights valiosos sobre a complexidade e a diversidade da cultura roraimense. Em última análise, a arte de Miliano não é apenas uma celebração da cultura roraimense, mas também uma contribuição significativa para o diálogo mais amplo sobre a identidade cultural no Brasil contemporâneo.

 

[i] Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Agronegócio e Desenvolvimento da Faculdade de Ciência e Engenharia (FCE), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp – Câmpus de Tupã). E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[ii] Bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (MídiaCiência), processo nº 2023/04511-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).